A cerveja e a mulher na história

Por Amanda da Rocha Lourensen*

Bebidas semelhantes ao que hoje conhecemos como cerveja[1] foram produzidas de forma independente por diferentes povos ao redor do mundo. Há registros tão antigos e diversos referentes à bebida que traçar uma linha de como surgiu e se desenvolveu a cerveja nos parece bastante inexato e incerto. As primeiras provas arqueológicas referentes à cerveja de que se tem registro nos remontam à região da Suméria, na antiga Mesopotâmia, e datam mais de 6000 a.C. Acredita-se que a cerveja tornou-se conhecida a partir de uma “descoberta acidental”, quando recipientes contendo cereais foram expostos à ação das chuvas e fermentaram espontaneamente, produzindo uma bebida alcoólica. O manejo dos cereais estava diretamente vinculado às mãos das mulheres, já que em diversas sociedades eram elas que realizavam as atividades relacionadas à agricultura, colheita e à esfera considerada doméstica.

Portanto, ao longo de milênios e em diferentes culturas, as mulheres são as responsáveis pelo feitio cervejeiro. É possível encontrar referências às mulheres em antigas receitas, mitos e até mesmo em orações – dado que ainda era desconhecido que o processo de fermentação dá origem ao álcool devido à ação de microorganismos, eram atribuídos poderes mágicos às mulheres e até mesmo status de divindade (como a deusa suméria Ninkasi ou a deusa romana Ceres, por exemplo). Na Idade Média a cerveja começa a ser produzida em larga escala nos mosteiros, e é durante esse período que Hildegard von Bingen [2] descreve em um de seus livros as propriedades de conservante natural do lúpulo. A partir de então este passa a ser um novo ingrediente da cerveja (até então só composta por cevada maltada, água e alguns outros adicionais, variando de cultura pra cultura), consistindo num marco científico importante para o desenvolvimento da bebida.

É durante a Revolução Industrial, entre os séculos XVIII e XIX, que a produção caseira passa a ser desenvolvida em larga escala, passando o feitio da esfera doméstica – privada – para a esfera comercial – “pública” – das grandes indústrias. É nesse momento do contexto histórico que se dá a forte desvinculação da mulher enquanto produtora da cerveja, e a composição do campo cervejeiro – desde o fabrico até a administração das cervejarias, inclusive o público a quem se destina o produto – passa a ser exclusivamente masculino. Os séculos XIX e XX são marcados pela crescente e rápida industrialização, massificação de produtos e a consolidação de novos padrões de consumo. As cervejas produzidas já não mais são feitas seguindo tradições cervejeiras antigas e não havia a intenção de focalizar na qualidade do produto em si, mas nas produções de quantidade exorbitante, e novas técnicas de produção, que barateavam o custo da cerveja, foram incorporadas ao feitio.

No Brasil, há registros de que a primeira bebida fermentada a partir de um cereal seja o cauim, produzida até hoje por alguns povos indígenas através da fermentação da mandioca ou do milho. Os cereais eram mastigados pelas mulheres e depois cuspidos em recipientes. Tal ritualística atribuía às mulheres poderes mágicos sobre o feitio do produto (GIORGI). Para além disso, a cerveja aparece com força somente no século XIX, com a chegada da família real. Primeiramente importada da Inglaterra e produzida por imigrantes alemães no sul do país; posteriormente, com o aumento dos impostos às importações, passa a ser fabricada em ampla escala pelas megacervejarias nacionais, que dominam completamente esse mercado. No final do século XX, surge uma peça importante no cenário da cerveja: a publicidade cervejeira, que tem como figura central das propagandas o corpo feminino associado ao consumo da bebida e incorpora ao imaginário social novos signos que abatem, por vez, qualquer associação entre mulher e cerveja que não esteja relacionada à mera objetificação e sexualização dos seus corpos.

Assim, configura-se um cenário que, influenciado por uma série de mudanças culturais, políticas e econômicas, tem como produto uma nova rede de significações em torno do conceito de cerveja. Sua produção, distribuição e consumo adquirem novas dinâmicas e significados, que em muito diferem daqueles associados outrora à cerveja caseira ou artesanal. Essa breve contextualização histórica que foi apresentada acima, tem como finalidade elucidar o produto que será o objeto de pesquisa, a cerveja, e principalmente demarcar a estreita relação que as mulheres mantinham com ela na antiguidade. Não somente a fabricação, mas todos os processos que envolviam a cerveja eram diretamente ligados à criação feminina. Atualmente, essas informações históricas são desconhecidas pela maioria das pessoas, consumidoras ou não de cerveja, e isso se deve à imagem estereotipada que a publicidade cervejeira construiu a respeito da mulher – e não somente as propagandas de cerveja, mas a publicidade em geral, que desde sua origem estabelece enquanto estratégia de vendas a exibição do corpo feminino como atrativo para os consumidores. Obviamente, o modo como a mulher é representada na publicidade não está descolado de contextos sociais que legitimam a produção de discursos hegemônicos que desvalorizam e inferiorizam a mulher na sociedade.  

Enquanto mulher e cervejeira, portanto, me interessa trazer, juntamente com a cerveja, a recuperação histórica da mulher enquanto sujeito produtor da cerveja, protagonista no desenvolvimento de conhecimentos e na realização de uma atividade econômica ao longo da história e em diferentes culturas; analisar como de sujeito ativo, produtor e criador, a mulher passou a ser objeto passivo de consumo masculino; como a representação da mulher nas propagandas – especialmente no que se refere às propagandas de cerveja, reproduzem, ao mesmo tempo em que reforçam elementos estruturais de uma sociedade machista e patriarcal, a partir dos quais se constrói todo um imaginário social entorno da mulher inferiorizada, objetificada, sexualizada.

[1] A cerveja é uma bebida alcoólica produzida a partir da fermentação de cereais, principalmente a cevada maltada; água, lúpulo e levedura.

[2]Monja beneditina, mística, teóloga, compositora, pregadora, naturalista, médica informal, poetisa, dramaturga,escritora alemã e mestra do Mosteiro de Rupertsberg em Bingen am Rhein, na Alemanha. É uma santa edoutora da Igreja Católica (1098~1179). 

*Amanda da Rocha Lourensen, estudante de Ciências Sociais da UFRGS

Cervejeira Artesanal, membro do Coletivo Autogestionário de Cerveja Artesanal Ceres