O exército do primeiro imperador da China
A história registra que o primeiro imperador da China, ou seja, o rei que conseguiu unificar o vasto território que hoje conhecemos como China, foi um grande guerreiro, com uma vida cheia de obstáculos e reveses, que teve de administrar. Sua atribulada vida como rei de um império levou-o à loucura e incutiu nele o desejo de construir o maior reino da terra, fazendo-se deus entre os homens, para que estes lhe pagassem tributo divino e dessem a sua vida pela causa pessoal daquele que conseguiu unificar o vasto território que hoje contém 21% da população mundial.
Chin shi Huang Di (literalmente, o primeiro imperador do reino de Chin) era o seu nome e, na época, era o homem mais poderoso do planeta, contando com um exército que beirava o milhão de pessoas. Em um dos documentos antigos, resgatado de seu espólio, há uma inscrição dizendo que ele era o homem mais poderoso da terra. Para termos uma ideia, o seu exército era dez vezes mais poderoso que o dos faraós do Egito, suas técnicas de forja de armas, com películas protetoras aplicadas na superfície de materiais fundidos em bronze, somente foram descobertas na Europa 2 mil anos depois. Ele via a si mesmo não somente como uma figura deificada mas também como um iniciador ou criador, alguém que estava começando uma longa linhagem.
Submeteu a China ao período mais sangrento e violento de sua história, durante 30 anos. Tudo para unificar as etnias, que lutavam entre si na disputa pelo poder a qualquer custo. Com dez vezes mais poder e súditos que o Egito dos faraós, e um império que sobreviveria mil anos diante do poder de Roma, a China lhe pertencia. Diz a lenda que o mausoléu de Chin shi Huang Di era imenso, com uma estrutura de bronze para acomodar o seu corpo e, no seu entorno, rios de mercúrio em movimento, para imitar os rios do vasto território conquistado. Na época, por influência de um médico que assistia o rei, todos acreditavam que a ingestão de mercúrio traria a longevidade, tanto é que o imperador pedia aos seus viajantes que trouxessem o produto para ser consumido, para que vivesse eternamente. Sua morte teria sido causada justamente por excesso de ingestão de mercúrio, uma vez que morreria aos 50 anos, com sintomas precedentes que atestam a sua intoxicação, pois demonstrava atitudes insanas e vontades inconsistentes com o perfil de alguém equilibrado.
Su Matien foi um historiador que registrou a origem do poder que manteve o imperador, sendo essa a única fonte de conhecimento sobre o primeiro império chinês até que, em 1974, o mundo caiu estupefato com a descoberta de um exército de terracota, que sinalizava a descoberta da tumba do primeiro imperador da China, Chin Shi Huan Di. Durante 2 mil anos, tudo o que tiveram à disposição fora o texto deixado pelo historiador Su Matien.
A província de Chin, última a ser dominada, por rendição, inspirou o nome da nação que conhecemos hoje como China, ou o reino de Chin. Até hoje foram desenterradas aproximadamente 8 mil estátuas de guerreiros de terracota. São autênticos soldados, se não fossem a carne e o sangue. Sua produção seguiu regras militares. Os soldados de terracota representam o que realmente deveria ser o exército de Chin. A posição das estátuas nos dá uma ideia da formação do exército de Shi Huan Di, ou o modo com o qual ele se posicionou no campo de batalha.
As três primeiras linhas eram formadas por uma infantaria de enorme mobilidade, eram as forças de choque do imperador. Atrás vinha a infantaria pesada, rodeada por colunas de carros (charretes puxadas por cavalos) e, em seguida, cercando toda a formação, uma rápida cavalaria.
Mas não era somente a formação do exército o que assombrara os investigadores, mas também as armas que portavam. As partes de bronze sobreviveram, e foram classificadas como as armas de bronze de maior qualidade já encontradas no mundo. Um dos achados mais incríveis foi uma espada conservada em perfeito estado, depois de mais de 2 mil anos enterrada. As espadas do reino de Chin foram aperfeiçoadas para que sua eficiência fosse pelo menos 30% melhor do que as espadas utilizadas na mesma época — tanto na largura e no comprimento quanto na resistência, o que dava larga vantagem em um combate corpo a corpo.
O fato de esses materiais terem permanecido enterrados durante 2 mil anos provoca uma reação curiosa quando são desenterrados. Logo após a retirada do material que cobre os soldados de terracota, o contato com o oxigênio, impedido durante tantos séculos, elimina em algumas horas a camada de cores que receberam na sua fabricação. É por isso que as estátuas têm essa cor de barro, na maioria das fotos disponíveis em sites e livros especializados.
Ocorre que as estátuas eram ricamente coloridas, assim como as esculturas da antiga Grécia. Ainda assim, na foto que ilustra a presente matéria, o leitor poderá perceber a riqueza do acabamento cromático que recebiam para compor o conjunto funerário do primeiro imperador da China. Logo depois que a foto fora tirada, os soldados de terracota perderam a sua cor original, adquirindo a cor de barro, pura e simples.
Esse é o motivo de ainda não terem escavado a tumba do primeiro imperador, pois ainda não há técnicas suficientemente eficazes de minimizar ou neutralizar os efeitos nocivos da exposição à luz, de muitas peças que, sabe-se, jazem no conjunto funeral do primeiro império chinês. A maioria do patrimônio arqueológico disponível nos arredores da tumba está relacionada com a guerra, e o exército de terracota era uma forma de o imperador se proteger na vida futura, visto que colecionou um vasto número de inimigos durante toda a sua vida.
Acredita-se que, no reino de Chin, dava-se muita importância às habilidades adquiridas para promover a guerra. Inscrições em alavancas posicionadas na ponta de uma lança dizem que o artefato fora construído no ano quinto do reinado de Chin, pelo seu primeiro-ministro, o que mostra a procedência do produto e lhe dá a garantia de qualidade.
O fato é que o reino de Shi Huan Di foi marcado por traições e tentativas malfadadas de destituí-lo do poder, desde sua própria mãe, que tivera dois filhos com um amante, querendo colocar um deles no trono, até uma tentativa de assassinato promovida por um reino que enviara uma missão diplomática para dar um presente ao imperador, quando o que pretendia era assassiná-lo. O imperdor perdoa a mãe, mas mata os filhos desta com o amante, assim como o próprio amante, que também tentara promover um golpe para lhe tomar o trono. Quanto à sua mãe, este a envia para uma terra longínqua, como pena pela traição.
Alguns anos depois desses acontecimentos, o imperador começa a ter alucinações, e via a morte por todos os lados, pensando que os espíritos dos mortos o estavam perseguindo, como vingança. Só havia uma coisa que poderia protegê-lo em outro mundo: um exército de espíritos, representados pelos soldados de terracota. As estátuas de terracota, em tamanho natural, muitas superando dois metros de altura, já haviam sido planejadas desde o começo do seu reinado como forma de preparar o seu funeral. Era desejo do imperador levar para a tumba os seus bens mais preciosos, incluindo o exército. Mas o imperador não somente levara os soldados para a sua tumba senão também muitas outras estátuas em tamanho natural, que representam artistas, malabaristas, tocadores de instrumentos, dançarinos e outras mais, que evocavam todo o séquito de súditos, serviçais e seguidores do império.
As concubinas do imperador também eram mortas e enterradas no momento de seu funeral, e por isso a comoção devia ser muito grande no momento do enterro. Somente as que tivessem dado filhos ao imperador eram poupadas. Por isso muitas concubinas se esforçavam para atrair a atenção do imperador, a fim de que fossem escolhidas mais vezes, e pudessem ficar grávidas, tendo a oportunidade de oferecer um descendente real e conquistar uma velhice mais confortável.
Geralmente, a escolha da concubina que dormiria com o imperador era feita através de cartas, onde os seus nomes eram marcados. Ocorre que algumas concubinas pagavam ao responsável por apresentar as cartas ao imperador para que este colocasse o nome da concubina em mais de uma, aumentando a chance de serem escolhidas muitas vezes. Assim, o imperador teria de aceitar o veredito das cartas e dormir com a concubina, pois era uma “vontade divina” que estava sendo colocada em prática. Caso a concubina não conseguisse conquistar o imperador ou não lhe desse filhos, seu destino seria o mesmo dos soldados de terracota: o enterro.
Outros imperadores da China foram enterrados com exércitos de terracota em tamanho miniatura, como espíritos guardiões para a outra vida, mas nunca com o tamanho natural, como o que se viu na tumba de Chin. Acreditava-se que, ao morrer, os espíritos dos inimigos pudessem atacar e, para proteger-se, cada rei ou imperador deveria contar com um verdadeiro exército. Daí a construção de soldados de argila, pois poderiam durar para sempre e protegê-lo dos seus inimigos espirituais.
* Bráulio Antônio Calvoso Silva, professor de literatura portuguesa e língua japonesa, é pesquisador e escritor. - brauliocalvoso@hotmail.com
