Carminha ou Nina: uma reflexão ética

Por Maria Clara Lucchetti Bingemer*

Acabou Avenida Brasil. O país parou para ver o último capítulo. Todos os corações batiam ansiosos na expectativa de finalmente serem informados de quem matou Max e qual seria o destino final de Carminha. A novela conquistou o Brasil, e transformou o cotidiano nacional.

Não costumo ver novelas. Porém, esta me fisgou.  Comecei a vê-la com minha filha, vinda da França para passar aqui um mês e meio.   Ela se foi, e eu fiquei enganchada nas aventuras da família Tufão, nos amores de Suellen e Cadinho e, sobretudo, no embate, na guerra de Carminha e Nina.  Ao chegar ao fim, quero trazer aqui minha leitura, uma a mais na enxurrada de comentários que já foram feitos sobre a grande obra de João Emanuel Carneiro em todos os tons e em todas as mídias. 

Jamais me convenceu a interpretação de que Carminha era a vilã e Nina a mocinha da trama.  E agora, ao final, vejo minha intuição confirmadíssima.  Carminha vilã?  Quem somos nós para apontar o dedo na direção de uma mulher que ainda em tenra idade viu com seus olhinhos virgens de maldade o pai matando friamente a mãe com um tiro no peito?  E que depois foi atirada por esse mesmo pai no lixão como quem se livra de um traste, de um escolho incômodo e indesejável? 

Onde estamos com a cabeça – e, mais ainda, com o coração –  ao condenar Carminha, essa mulher não medíocre, essa sobrevivente do próprio pai bandido que um dia  fugiu do lixão em busca de um respiro, uma vida mais digna desse nome?  E teve que viver na rua, dormir nos bancos de praça, mendigar até ser recolhida por uma cafetina que a empregou como prostituta na Vila Mimosa?  Alguém se atreve a fazer a radiografia desse coração de menina e mulher para ver o tamanho das chagas que o feriram de morte para sempre e lhe deram a garra sobre-humana de passar por cima de qualquer obstáculo a fim de manter-se viva e com a cabeça fora da lama?

É fato que todos esses horrores a levaram a uma trajetória impiedosa, não recuando diante de nada para alcançar seus objetivos. E esses se resumiam em sair da pobreza asquerosa, para onde a haviam jogado a irresponsabilidade e a crueldade paternas, e encontra um lugar ao sol. É verdade que ela procedeu sem dó nem piedade com Nina e muitos outros.

Enquanto isso, qual o itinerário de Nina?  Sofrido também, com a perda da mãe, a entrada de uma madrasta odiada em sua casa e finalmente a perda do pai e a ida para o lixão levada por Max, sob a orientação de Carminha.  É compreensível a raiva que a menina sentiu.  Porém, Nina – aliás, Rita – tem amor a recordar.  Pode fechar os olhos e lembrar-se do carinho e do amor da mãe, do desvelo do pai, do carinho  de ambos que lhe foram subtraídos pela morte e não a abandonaram a um destino implacável.  Nina ficou pouco tempo no lixão, sendo logo adotada por um rico e carinhoso argentino, que a criou entre os montes e vinhedos de Mendoza.  Ali ela pode participar da colheita da uva, e pisoteá-la com seus pés juntamente com as irmãs e os amigos.  Ali ela descobriu sua vocação de chef e aprendeu a fazer iguarias.  Ali recebeu uma herança que lhe permitiu voltar ao Brasil e viver confortavelmente, para poder trabalhar por diletantismo enquanto preparava a vingança que desfechou sobre Carminha.

Personagem mutante, Nina está longe de ser uma pessoa ética.  Fica à vontade com Max e com os garotos de programa da cafetina Neide.  Trama e faz alianças com Deus e o diabo para levar adiante seus planos.  Envolve Nilo e outros pobres diabos do lixão em sua trama.  Cheia de ódio no coração, centra a vida sobre a vingança que quer perpetrar.  E nem o amor de e por Jorginho consegue afastá-la por um minuto que seja daquilo que se tornou o centro de sua vida: acabar com Carminha.  

Quem condenará Carminha, quem lhe atirará a primeira pedra?  O devasso Leleco ou a neo-burguesa deslumbrada Muricy?  O egoísta Tufão que durante doze anos prestou tão pouca atenção à mulher  com quem se casara, que sequer percebeu que ela o traía debaixo de seu teto?  E que atropelou o pobre Genésio e omitiu socorro para não atrapalhar sua vida de supercraque?

Quem no lugar de Carminha seria capaz de ter a nobre atitude final do último capítulo? Quem abriria mão do último golpe em nome da vida dos outros, inclusive de sua pior inimiga?  Senhores, continuar chamando Carminha de malvada é ter o próprio entendimento e sensibilidade distorcidos.  Entre Carminha e Nina existe uma coisa que é clara.  A vilã não é Carminha.

* Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, é autora de 'Simone Weil - A força e a fraqueza do amor' (Ed. Rocco). -  mhpal@terra.com.br