Carlo Maria Martini: luminoso legado
O último dia do mês de agosto deste ano de 2012 trouxe consigo a notícia do falecimento de Carlo Maria Martini, cardeal da Igreja Católica e arcebispo emérito de Milão. O Parkinson que o habitava há muitos anos e o obrigou a voltar de Jerusalém, para onde fora após deixar o comando da diocese, finalmente fechou-lhe os olhos alertas e vigilantes.
É difícil descrever uma personalidade de tão alta estatura como o cardeal Martini. Sua biografia é tão rica e de tão largo alcance que todas as palavras parecem pequenas ao tentar retratá-lo. Sua trajetória na Igreja e na sociedade inclui a entrada na Companhia de Jesus, a ordenação sacerdotal, o duplo doutorado em Teologia e em Sagrada Escritura, o cargo de reitor do Pontifício Instituto Bíblico e da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, a ordenação episcopal à frente da arquidiocese de Milão, o cardinalato.
Todo esse brilhante itinerário em cargos da hierarquia eclesiástica e na liderança do conhecimento das ciências sacras e da crítica paleográfica do Novo Testamento é, no entanto, suplantado pelo rastro luminoso de sua atuação de pastor à frente da diocese de Milão.
E depois disso por todas as reflexões sobre a cultura atual e a vida eclesial que elaborou e comunicou nos seus anos de retiro em Jerusalém e em Roma, onde faleceu. Carlo Maria Martini era um homem lúcido.
Sua abertura a Deus e sua profunda fé traduziam-se em sua pessoa e em sua vida por uma capacidade de ler os acontecimentos e os sinais dos tempos com uma sensibilidade e uma percepção inigualáveis. E aquilo que intuía e via com seu olhar contemplativo e profético comunicava-o ao mundo e à Igreja que amava com coragem e transparência. Assim foi que em Milão — lugar onde exerceu seu episcopado — potenciou o diálogo entre ateus e crentes, abrindo para tanto a própria catedral, na qual se deram memoráveis encontros e diálogos organizados pela chamada Cátedra dos não Crentes.
De um desses diálogos é fruto o famoso livro em que conversa com Umberto Eco sobre o instigante tema Em que creem os que não creem?. Da mesma forma dialogou aberta e respeitosamente com outras religiões, sendo tido em altíssima consideração pelas autoridades religiosas presentes em Milão e em outras partes da Itália e da Europa. Peregrino incansável, Martini andou pelo mundo comunicando suas reflexões e despertando consciências com suas questões.
Sua presença transmitia ao mesmo tempo uma sólida fidelidade ao Evangelho e ao Reino de Deus e uma universal abertura a todos os desafios candentes do mundo e da sociedade hodiernos. A nada se furtava o cardeal, com seus luminosos olhos azuis e seu perfil de águia. A tudo olhava de frente, sem temor e com fé humilde e profunda. Tal como o vinho, Martini refinou-se e adquiriu mais qualidade com o passar dos anos. Após retirar-se, aos 75 anos, jamais deixou de comunicar e transmitir aquilo que na observação da realidade percebia e na oração e no estudo aprofundava.
Foi esse o período em que era possível senti-lo mais livre. Sem ataduras ou freios, falava com liberdade e desassombro sobre questões delicadas de moral e costumes, sobre pontos nodulares da fé e da teologia. E, sobretudo, sobre a Igreja, sobre a vida do povo de Deus que foi sempre a sua grande paixão.
Era possível sentir nas palavras do cardeal chegado à maturidade e à sabedoria uma imensa e profunda preocupação com o futuro desta instituição pela qual deu sua vida e que é santa apesar de seu pecado. Via com dor tantos e tantas se afastando da Igreja. E por eles e elas pulsava seu coração de pastor.
Sem descanso falava, refletia, dialogava sobre temas como segundas uniões, diversidade sexual, a vida sacramental dos recasados. Igualmente sobre questões de ética médica, como a interrupção das terapias em doenças terminais quando já não ajudam a pessoa e prolongam artificialmente a vida. Aqueles que não partilhavam sua fé mas viviam sua ética ouviam-no com respeito.
Aqueles que partilhavam sua fé, mas se haviam afastado, magoados ou desiludidos com a instituição eclesiástica, admiravam-no e escutavam-no com reverência.Sua morte deixa na Igreja de hoje, tão necessitada de homens dessa têmpera, um vazio impreenchível. Mas seu legado luminoso permite esperar que as novas gerações continuem a escutar sua voz. E a pôr em prática seus ensinamentos.
Junto a João XXIII, Oscar Romero e tantos outros, Martini agora é figura inspiradora para todos nós que acreditamos na humanidade e desejamos ardentemente fazer acontecer no mundo o projeto do Reino de Deus.
* Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, é autora de 'Simone Wil - A força e a fraqueza do amor' (Ed. Rocco) e de 'A Argila e o espírito - Ensaios sobre ética, mística e poética' (Ed. Garamond).
