Vigiar, punir e deseducar: Defensora denuncia falta de vagas em escolas do Degase

"Basta construir um prédio que o Judiciário acha que pode entulhar de adolescentes"

Por MARIA LUISA DE MELO, malu@jb.com.br

Defensora pública titular da Coordenadoria da Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, Maria Carmen de Sá participa de visitas semanais às 24 unidades de internação e semi-internação do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase), prestando atendimento a adolescentes infratores. A batalha por melhores condições para os que cumprem medida tem muitos desafios, sobretudo combater a tortura e garantir o direito à educação aos internos. A superlotação, segundo denuncia Carmen, impede que todos os jovens tenham acesso ao ensino regular dentro das unidades. Procurada, a Secretaria estadual de Educação, informou que construirá seis novas escolas em unidades do Degase, sem fixar um prazo para isso.

Como funciona o ensino regular para jovens infratores que cumprem medida socioeducativa nas unidades do Rio?

A gente acabou de participar de uma audiência no Dom Bosco, na Ilha do Governador, uma antiga unidade de internação provisória, que agora tem internos que também cumprem medida definitiva. Esses adolescentes não estão conseguindo estudar. No caso dos internos provisoriamente, a educação não é formal, com o adolescente sendo inserido numa determinada série, porque fica ali só até 45 dias, aguardando julgamento do processo. O que se tem ali são atividades pedagógicas de leitura e interpretação de texto. Essa unidade tem um número limitado de salas destinadas a essas atividades e não tem escola para todo mundo. A Divisão de Pedagogia do Degase tentou conseguir 90 vagas para os já condenados. Só que a gente tem cerca de 170 cumprindo a definitiva no Dom Bosco. 

Hoje, 90 meninos não estão estudando de jeito nenhum. E, mesmo na provisória, você tem 180 vagas para provisória, com mais de 200 cumprindo medida. Já não tinha vaga para todos da provisória. Agora, para completar, você tem muitos jovens em internação definitiva que também não estão conseguindo estudar. O mais dramático é que, quando você está numa internação definitiva, pode ficar um, dois ou até três anos ali. Você está sentenciando que aquele adolescente não vá todos os dias à escola formal, mesmo ele estando formalmente matriculado. Ele não frequenta aula, porque ele não tem lugar para sentar. 

A grande questão é que a escola, muitas vezes, não consegue reter esse menino antes de ele ser internado, por várias razões: pobreza, falta de interesse na escola, violência, conflitos que surgem, e o tráfico atraindo no horário da escola. Quando o estado pega esse menino, eu acho lamentável o garoto ficar um ano sob custódia do estado e o estado não conseguir dar educação para ele. E olha que temos os turnos da manhã e da tarde. De acordo com a Resolução 3, do Conselho Nacional de Educação, essas escolas deveriam funcionar de forma integral, mas as unidades não conseguem cumprir isso.

Qual o relato desses jovens sobre essa situação de serem afastados da escola?

Eles se queixam de ficar na tranca [sem sair da cela], porque a escola é um dos poucos momentos em que eles saem do alojamento e passeiam pela unidade. São três momentos para sair da tranca: nas idas ao refeitório, algum curso ou atividade esportiva que o adolescente faça e a escola. Com a superlotação e por falta de efetivo de agentes, a primeira coisa que cortam é a atividade esportiva. Os adolescentes ficam sem fazer atividade física. Aí você já começa a entender um pouco a agressividade deles. No caso do almoço e do jantar, são entregues quentinhas dentro do alojamento, porque não tem como tirar os jovens das unidades para isso. A regra tem sido quentinha na cela. A saída para os cursos também vai rareando por conta da crise. 

O Degase apresenta alguma alternativa para resolver esses problemas?

Uma saída que se chegou a se pensar para inserir todo mundo foi a criação do turno da noite nas unidades. Mas o Degase diz que nesse intervalo de horário está dando jantar para os meninos. Como é que vai estudar de 18h às 22h, se o toque de recolher é às 20h? Por volta das 19h, os garotos já estão se acalmando para dormir. O terceiro turno é péssimo, mas no sistema socioeducativo você vai sendo vencido pela realidade. Melhor seria o terceiro turno do que esses adolescentes continuarem sem estudar.  O Degase não consegue admitir e fazer de um outro jeito. Levar o excedente de adolescentes para outras unidades da rede pública também não seria possível. Eles argumentam que o efetivo é insuficiente.

Então, qual seria a solução?

A solução seria: só estar ali dentro quem precisa. Como você não tem condições de estudar fora, de construir uma outra unidade por conta da crise do estado e as unidades não vão sair do papel, como é que se resolve o problema? Reduzindo a superlotação, reduzindo a capacidade da unidade. Aí você tem que fazer uma escolha de Sofia, sobre quem entra e quem sai. Por isso, a gente tentou regulamentar a Central de Vagas. Existe um projeto de lei sobre isso tramitando na Assembleia Legislativa. Para tudo na vida a gente trabalha com o conceito de lotação. Você não entra num restaurante, se ele estiver cheio. Se um hotel não tem vaga, você não se hospeda. No cinema, você não senta no colo de ninguém para ver um filme. Você só entra no hospital, se a regulação de vagas te permitir um leito, e você só faz a sua cirurgia, quando tiver vaga. 

Por uma questão cultural, presídios e unidades de internação não trabalham com a lógica da lotação. Não importa. Você vai atulhando: trata-se de um repositório de corpos. Basta que você tenha o prédio da unidade, e não importa a lotação. Você tem presídios que cabem mil e estão com quatro mil jovens. Tem unidades que cabem cem e estão com 400. No Educandário Santo Expedito, cabiam 200 e chegaram a quase 600. No Dom Bosco, cabiam 240 e está com mais de 400 (entre internos provisórios e definitivos). No Centro de Atendimento Intensivo da Baixada, cabem 124 e está com quase 300. E as unidades de interior que cabem 80, 90 internos, hoje giram em torno de 200 e poucos adolescentes. 

É por isso que somos a favor da regionalização do sistema, desde que respeitem o padrão do Sinase (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), de construir unidades pequenas. A gente defende que cada unidade tenha uma central de regulação de vagas. Senão, a gente vê é que basta construir um prédio que o Judiciário acha que pode entulhar de adolescentes. Vai entulhando até que pega fogo ou acontece uma rebelião. 

No ano passado, em Volta Redonda, tínhamos rumores muito fortes de que teria uma rebelião no Natal. A Defensoria Pública oficiou o juiz avisando sobre isso. Então, o juiz fez um mutirão e esvaziou a unidade, progrediu uns meninos [passando-os de internos para semi-internos ou liberdade assistida], soltou quem estava em provisória. Se foi possível fazer um mutirão e resolver, é viável que eles não estivessem lá dentro. O sistema não precisa viver de mutirão. A coisa tem que ser racional. Esse esforço de mutirão só é necessário porque o sistema não é racional.

Como seria a central de regulação de vagas?

Os atos infracionais mais graves [homicídio, latrocínio, estupro] teriam prioridade para entrar. Os menos graves, cometidos sem violência como furto, receptação, tráfico não armado [menino pego com papelotes, mas sem arma]. Nesses casos, não havendo vagas, o menino seria encaminhado para o meio aberto para esperar uma vaga. Não é o ideal, mas é a administração de um sistema onde não cabe todo mundo. Mas é o que dá para fazer nesse momento.  

Como fazer com que o adolescente, durante a medida, consiga estudar e sair melhor do que entrou, com alguma ferramenta para recuperá-lo daquela condição que o inseriu na criminalidade? Como você faz isso com uma equipe técnica sobrecarregada, com jovens inseridos numa lógica brutal das unidades, sendo torturado, com agentes adoecidos? Não tem como você trabalhar num alojamento que cabem quatro meninos e tem 17. A saúde do trabalhador fica comprometida. A tortura do sistema é estrutural.

Com quais casos de tortura já se deparou nas unidades?

Já peguei tortura acontecendo. Chegamos e a canela do menino estava sangrando com marca de coturno. Fomos todos para a delegacia, para lavrar registro de ocorrência em flagrante. São muitos casos. Tudo consta em reclamações que fizemos à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Tinha uma tortura que acontecia na unidade feminina que se chamava bailarina. Consistia em botar a menina de calcinha e sutiã, algemada na trave do gol. Ela ficava a noite inteira ali, durante horas. Como era alto, ela tinha que ficar na ponta do pé. Costumo dizer que, se uma tortura tem nome, é porque ela é muito usual. Ninguém batiza uma tortura que foi feita uma vez só.