No amargo balanço da demolição
Casa onde Tom Jobim compôs "Garota de Ipanema" está prestes a ir abaixo
Era o ano de 1962. O maestro Tom Jobim ainda engatinhava, aos 35 anos, em sua estrondosa carreira musical. Ele dedilhava o piano em sua casa, na Rua Barão da Torre 107, em Ipanema, na Zona Sul da cidade, quando, sob a inspiração do auge da beleza da carioca Heloísa Eneida Menezes Paes Pinto, conhecida como Helô Pinheiro, aos 17 anos, criou a melodia de “Garota de Ipanema”, imortalizada pela letra de Vinicius de Moraes (1913-1980). A mesma casa, há dez anos ocupada pelo Bonita Pousada e Hostel, está prestes a ser demolida para virar um prédio de quatro andares, na bucólica vila de oito unidades onde ela está situada, como noticiou recentemente o colunista Jan Theophilo, do “Informe JB”.
Foi também no mesmo endereço que Tom compôs letra e música de “Samba do avião”, que dá nome a seu quarto, de número 6 da pousada, com uma pequena sacada voltada para a Barão da Torre. Construída em 1942, com três pavimentos e 500 m², a casa não tem valor arquitetônico. Esbanja, porém, valores históricos e emocionais que justificariam seu tombamento. “Como comerciante, não posso pleitear proteção ao imóvel, mas como carioca, estaria coberta de razão para isso”, comenta Carolina Fernandes, 37 anos, sócia do hostel e também de outra pousada na mesma rua, o Beach Club, esta sim, tombada e inserida em uma Área de Proteção do Ambiente Cultural (APAC).
Ao saber que a casa onde estudou, na então Escola Sarah Dawsey, na sala onde ficava o quarto de seu pai, Paulo, a primeira coisa lembrada por Daniel Jobim, neto de Tom, 45 anos, foi a canção “Corcovado”, criada pelo avô em 1965, quando morava ali perto, na Rua Nascimento Silva 107. “Um cantinho e um violão/Este amor, uma canção/Pra fazer feliz a quem se ama/Muita calma pra pensar/E ter tempo pra sonhar/Da janela vê-se o Corcovado/O Redentor que lindo”, trecho de outra obra-prima do autor, ironicamente inspirada pela especulação imobiliária no bairro. “Meu avô foi passar um fim de semana fora do Rio e, quando voltou, já não conseguia avistar o Cristo, por causa da construção de um prédio. Foi com essa decepção que criou “Corcovado”. Agora, sou eu que estou sem palavras diante da ameaça de demolição dessa casa”, lamentou.
A configuração de escola requereu uma reforma radical para o uso de pousada pelos novos proprietários. “Já não me lembro quanto gastamos, somos uma empresa pequena e a cor, por exemplo, que era para ser beterraba, ficou rosa, porque o dinheiro estava curto e tivemos de diluir a tinta”, lembra Carolina. Claro que Tom está por toda a parte, a começar pela placa na entrada: “Nesta casa morou Antonio Carlos Jobim, famoso compositor e maestro brasileiro, de 1962-1965”. Ao lado da recepção, há um pôster estilizado reunindo Tom, Vinicius, João Gilberto e Nara Leão, a musa da Bossa Nova. Cada um dos 29 quartos leva o nome de uma música do maestro, presente também ao lado da piscina, na descontraída estátua de papier maché do artista carioca Valmon, devidamente acompanhada por uma tulipa de chope.
“Muitos casais de franceses e alemães, músicos, artistas e escritores se hospedam em hotéis de luxo e vêm para cá passar ao menos uma noite no quarto de Tom”, relata a gerente Gabriela Maravilhas. O quarto é antecedido pela placa bilíngue: “Inspire-se, você está no quarto de Tom Jobim”. Com alternativas que vão da cama com café da manhã a R$ 75, aos quartos com ou sem banheiro, de R$ 180 a R$ 350, o Bonita esbanja charme e tem estrangeiros entre 70% de seus ocupantes. Claro que a trilha musical do simpático bar vizinho à piscina é movida a Bossa Nova, a não ser que os hóspedes façam pedidos especiais.
Conforme noticiou o Informe JB, a casa foi adquirida em 10 de outubro pela RK3 Empreendimentos Imobiliários, por R$ 6,6 milhões, e a empresa já tem autorização para demolir. Segundo a secretaria municipal de Urbanismo, o imóvel não é tombado nem está em processo de tombamento. “Portanto, não há qualquer impedimento legal para que seja construído um novo empreendimento no local. A licença para a demolição do imóvel foi emitida em 28 de agosto passado, e está em tramitação no Urbanismo a construção de um imóvel com quatro pavimentos no local”, diz a nota da secretaria. O JORNAL DO BRASIL tentou contato com a família Hermanny, proprietária do imóvel, mas não obteve retorno.
“A casa é um patrimônio da cidade, se não for tombada, é por falta de política pública da prefeitura e não podemos permitir que isso aconteça. Tombamentos não são feitos só por motivos arquitetônicos: a história e fatos emocionais também precisam ser levados em consideração”, afirmou a presidente da Associação de Moradores de Ipanema, Maria Amália Loureiro.
O maestro Antonio Carlos Jobim (1927-1994) passou a vida investindo no estudo de música e praticando no piano e no violão até conquistar sua fama internacional. Ele cansou de virar madrugadas fazendo shows intimistas nas boates de Copacabana para sobreviver. Nessa mesma época, um pequeno e talentoso grupo começava a adotar o estilo musical criado por João Gilberto, batizado de Bossa Nova. Em 1962, no tranquilo endereço da Barão da Torre 107, Tom compôs a melodia de “Garota de Ipanema”, sob a inspiração do uísque que degustava no Bar Veloso — atual Garota de Ipanema —, ao apreciar a passagem da jovem e bela carioca moradora do número 22 da Rua Montenegro — atual Vinicius de Moraes. Também nasceu ali a letra e música do antológico “Samba do avião”, que contribuiu para que seu nome batizasse o Aeroporto Antônio Carlos Jobim, antigo Galeão, na Ilha do Governador.
Segundo relato de Carlos Alberto Afonso, 69 anos, professor de Teoria Literária e dono da Toca do Vinícius, em Ipanema, o maestro e o poetinha deram um depoimento em vídeo para Toquinho, no início dos anos 1970, em que o segundo explicava que escreveu a letra em Petrópolis, na casa de Maria Lúcia Proença, com quem era casado na época. “Tom lembrou que a letra teve duas versões e, na primeira, havia um trecho que dizia assim: “eu estava tão triste, tão passarinho...”. Gaiato, ele contou que via Helô Pinheiro, de quem foi padrinho de casamento, vestida de normalista. A música foi executada em público pela primeira vez em temporada na boate Au Bon Gourmet, em Copacabana, iniciada em 2 de agosto de 1962, com Tom, Vinicius, João Gilberto e Os Cariocas, sem direito a cachê. Não demorou para a boate virar ponto turístico de gringos. Seriam 15 dias, mas foi tanto sucesso que esticou por 45 dias”, conta Afonso.
Quem teve o privilégio de assistir ao show foi a socióloga aposentada Maria Lúcia Porciúncula, que cursava o clássico — correspondente ao antigo segundo grau, hoje ensino médio — no colégio Andrews, com 15 anos na época. “O show era noturno e nem passava pela minha cabeça assistir. Nessa época, já estudava violão com Edu Lobo e Wanda Sá, e começava a acompanhar a Bossa Nova. Um dia, estava no aniversário de uma amiga quando ouvi no rádio que o show teria uma matinê naquele dia. Saímos todas correndo para a boate. Eles ainda estavam no início da temporada, e havia um clima intimista, todos se abraçaram no final. Quanto mais cantavam, mais nosso grupo cantava com eles. Foi uma emoção que tomou conta do espaço inteiro”, relembra Maria Lúcia, sem conseguir conter as lágrimas.
Trajetória meteórica da canção
“Garota de Ipanema” foi gravada pela primeira vez por Pery Ribeiro, acompanhado pelo Tamba Trio, em 1962. Durante uma sessão de gravação, em Nova York, que reuniu João Gilberto, Tom Jobim e o saxofonista Stan Getz, o letrista de música popular norte-americana, Norman Gimbel, se ofereceu para criar uma versão em língua inglesa para a canção. Gimbel fez a letra a partir da tradução literal do texto de Vinicius, baseada nos hábitos musicais dos americanos de classe média. Embora Tom não tivesse ficado muito satisfeito com o resultado, acabou por concordar. O sucesso internacional começou a despontar com a gravação de Astrud Gilberto — então mulher de João Gilberto — com Stan Getz.
A popularidade internacional da canção só fez aumentar com o álbum “Getz/Gilberto”, de 1964, lançado pela Verve Records, que atingiu o quinto lugar na Billboard Hot 100 por duas semanas, enquanto ficou na 29ª colocação no Reino Unido. Em 1965, a canção ganhou o Grammy de Gravação do Ano e, em 2004, foi incluída no Registro Nacional de Gravações pela Biblioteca do Congresso. Ficou em 27º no ranking da Revista Rolling Stone Brasil de 2009, que elencou as maiores músicas brasileiras. Quase que um ícone mundial e nacional, “Garota de Ipanema” foi gravada por cantores como Frank Sinatra, Amy Winehouse, Plácido Domingo, Cher, Mariza, Madonna, Roberto Carlos, Caetano Veloso e Tim Maia, entre outros.
