Brincadeira de bandido e ladrão e essa coisa toda
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Vovô mito tem muitos netinhos. Eles adoram o vô. Pra falar a verdade, nem sempre foram tantos os netinhos do vovô mito. Foi meio que de repente que eles se chegaram ao vô. Dizem por aí que os tios dos netinhos – aí ó, pra quem tá por fora, netinho do avô é sobrinho do filho do vovô, tá!? –, então, dizem que, acho que com a internet, sei lá, os sobrinhos passaram a conhecer vovô mito pelas mídias sociais dos filhos do vô.
Antes de seguir, é legal pesquisar de onde veio esse apelido meio esquisito do vô. Na verdade, acho, foi meio que do nada – o apelido, não o vô, tá? No início os netinhos podem até ter estranhado, mas aos poucos foram se amarrando e hoje tão amarradões... eu acho. Até gostam, acham irado... eu só acho. Uns dizem que é do cacete, diferentão, aí, e eu também acho, e essa coisa toda.
E assim vovô mito encantava a netaiada. A meninada do condomínio onde mora o vô da galera adorava brincar com os netinhos do bom velhinho. No princípio eles até estranharam a brincadeira preferida das crianças do vô mito: “bandido e ladrão” – eles sempre queriam ser os “ladrões”. “Trabalhar pra quê?”, diziam os pimpolhos. E encaravam a molecada dizendo: “Se precisarmos de uma força pra comprar uns troços maneiros e mais caros, daremos um jeitinho, aquele só nosso, de convencer os ‘bandidos’ a nos ajudar”.
A garotada do condomínio começou a achar que os netinhos do vovô mito tinham lá suas razões. E não adiantava os pais da criançada dizerem pros moleques deles que não era bem assim, e essa coisa toda. Num dia lá, teve até um menino que chegou a dizer que não tava achando muito legal, e que aquela coisa toda tava ficando estranhona... Pra que, rapaz, os netinhos mandaram o menino sair do play. O menino subiu chorando. Nunca mais teve coragem de contrariar os netinhos do vô mito. E a brincadeira de bandido e ladrão seguia firme e forte.
Aos poucos começaram a rolar uns boatos. Uns gaiatos chegaram a dizer que vovô mito tinha umas manias estranhas. Ao ouvirem esse papo, os netinhos gritavam, “Fake news!”, “Uma tremenda de uma inveja”, e essa coisa toda.
Mas os boatos iam de vento em popa. Uma loucura. Saca só esse: uns meninos garantiam que na casa do vô mito tinha uma sala escura, grandona, com uma cadeira lá que quem se sentasse gritava que só. Coisa de doido. Sem falar numas correntes presas numa cama lá... Não sei, só sei que a galera do condomínio morria de medo. Mas a brincadeira de bandido e ladrão seguia rolando.
Uns mais ousados chegaram a dizer que vovô mito tinha raiva da empregada lá da casa dele, porque ela era preta... E essa coisa toda, vai vendo. Mas outros mais ponderados duvidavam: “Não é possível uma coisa dessas”.
Mas, como todo boato, a coisa ia aumentando. Teve até aquele menino do Bloco C que jurou ter visto um índio, de cocar e o escambau, sair dizendo que vô mito tinha dito que não gostava dele. “Tudo intriga! Fake news!”, garantiam os netinhos.
E aquele lá do Bloco A, que disse que tinha ouvido dizer que um amigão do vovô mito dos netinhos tava mandando cortar umas árvores grandonas lá da floresta pra vender? “Bizarro, moleque, aí!”, dizia o menino do Bloco A.
Mas a brincadeira de bandido e ladrão continuava divertindo inocentemente as crianças do condomínio, que, àquela altura, só queriam brincar se fossem os “ladrões”, e essa coisa toda.
E os pais começaram a se preocupar com aquilo, que, segundo alguns deles, já estava começando a passar dos limites. Mas os boatos não paravam de rolar.
Dizem que um grande amigo do vô mito, ou teria sido o próprio vô mito... sei lá... mas o que rolava nas ruas do condomínio é que ele, ou um outro amigão dele, riram pra cacete quando um deles imitou alguém, parece que zoando aquele senhor do quinto andar do Bloco C, que ficou doente e não conseguia respirar direito. “Qualhé, mané! Que papo doido é esse!”, comentaram alguns mais assanhadinhos.
Coisas inacreditáveis continuaram a pipocar pelo condomínio. Vai vendo: uma menina do Bloco A garantiu que viu, pela janela da sala da casa do vovô mito, que tinha muita grana embaixo da mesa da sala de jantar dele, e não era dinheiro de Banco Imobiliário, não, ela disse. E disse mais, tava tudo dentro de umas caixinhas de papelão, já meio rachadinhas nas beiradas, e tudo mais. Cês aí tão pensando que foi só isso que ela viu, né? Saca só essa: a garota jura que ouviu um dos tios dos netinhos do vô mito dizer pros outros tios que tava indo comprar uma casa. Isso enquanto enchia a mala com a grana que tava embaixo da mesa da sala de jantar, e que não era bufunfa de Banco Imobiliário, não! “Uma casa, mané, aí! É mole?”, disse a menina do Bloco A. “Fake news”, gritaram os netinhos do vô mito. E a meninada duvidada – ou não duvidava, sei lá.
Mas a coisa engrossou mesmo no condomínio foi num domingo à noite. Assim, ó: tinha um grandão que morava no Bloco C. Uns diziam que ele era descendente de quilombola, essa coisa toda. Mas vai vendo, ele ensinava a molecada a jogar capoeira (acho que os netos do vô mito não participavam dessas rodas, não), daí que a maioria da criançada adorava o cara. Pois bem, naquele tal domingo, lá vinha o cara de mãos dadas com a namorada – lindona a namorada do cara, aí; uma preta bonita de fazer as meninas dos olhos das minas do condomínio se revirarem de inveja; dizem até que Seu Jorge, brodaço do capoeirista, fez uma música pra ela, mas isso já é outro papo.
Voltando dois quadrinhos, praquele domingo à noite. Quando o casal passou, caminhando abraçadinhos, no maior love, os netinhos do vô mito, que tavam bem na esquina, na maior resenha, resolveram implicar com o cara: “Seu isso, seu aquilo... Nosso avô é isso, nosso vô mito é aquilo...”. Ah, rapaz, pra quê, o capoeirista, que era neto de quilombolas, lembram?, ficou putaço: “Cês ficam com esse papo de vô pra cá, vô pra lá... quer saber, eu acho que esse cara é, é... brocha!” Vixe!
Diante da fortaleza do capoeirista, os netinhos do vovô mito bateram em retirada. Mas de longe ouviam-se as suas risadas e até uma frase sobrou no ar: “Vô mito, brocha? É ruim, hein!”.
Até que um dia vovô mito virou síndico do condomínio, e tudo o mais... vai vendo. Só sei que os pais da meninada que moravam lá arrepiaram os cabelos, se mancaram e proibiram a filharada de brincar de bandido e ladrão. Até que um deles alertou: “Agora é tarde, meus queridos condôminos! Vamos ter de tirar o vovô mito do poder. Não será nada fácil... e essa coisa toda”.
Aquiles Rique Reis, vocalista do MPB4, outubro 2022
