Manifesto que não manifesta

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Por RICARDO A. FERNANDES

Nos últimos anos, poucas vezes me senti tão satisfatoriamente representado quanto na vitória brasileira nas 500 Milhas de Indianápolis, corrida realizada há algumas semanas no autódromo norte-americano. Não sou fã do automobilismo praticado nas terras do tio Sam. Prefiro a Fórmula 1. Não a atual, a antiga, de Emerson Fittipaldi, Piquet e Senna. Tampouco acompanho Hélio Castro Neves, piloto vencedor. Não o conheço bem. Não sei o que fez e deixou de fazer, suas opiniões no Twitter – se é que tem conta – ou se enfrenta processo por dirigir bêbado e atropelar um esquilo. Mas ver um brasileiro ganhar algo importante reacendeu a vontade de torcer, vibrar com a vitória de um conterrâneo, ainda que a primeira entrevista após a prova tenha sido inteiramente em inglês. Dá para entender, a emissora era local. Mas nem uma palavrinha em português? Nem a menção aos seus pais e cidade onde moram? Tudo bem. Em meio à crise patriótica, é o que temos.

A escolha pela torcida no automobilismo possivelmente se justifique pela falta de identificação com o futebol nacional. Está cada vez mais difícil torcer pela seleção brasileira masculina. Estranhamente vestida de azul e branco – talvez com a intenção mostrar aparente neutralidade – contra um Paraguai apenas regular, a expectativa de vitória, na última terça-feira, se confirmou. Mas o jogo não empolgou.

Anos atrás assisti a uma partida do Brasil na companhia de amigos. Dentre eles, um casal cujo namoro ia mal. A partida era boa e a seleção fez um gol. Todos vibramos, animados, ao contrário do casal, cuja celebração se deu por meio de um beijo protocolar. O ligeiro encontro de lábios buscava o último aroma da esperança. Um afago na ideia do que, tempos atrás, representara algo importante. Mais forte, no entanto, era a convicção do afastamento. Sentado no sofá de casa, os gritos de gol contra o Paraguai, na última terça, saíram com a mesma intensidade do beijo daqueles namorados.

Isso porque, mais uma vez, criou-se uma esperança seguida de frustração. Se até meados da semana passada havia chance de rebelião, os jogadores levantando a voz contra a realização da tal Copa América num país de quase 500 mil mortos pela covid-19, anteviu-se, após o afastamento do presidente da CBF, um discurso vazio. Foi como o “depois eu explico” nos relacionamentos amorosos. A explicação vem, mas quando chega está tão fria que não convence ninguém.

Um manifesto que nada manifesta, a não ser a incapacidade de se dizer qualquer coisa relevante. Ou a covardia de jogadores para, ao menos, assumir que pensam antes nos próprios interesses do que na camisa que vestem. A comissão técnica, por sua vez, em meio à possibilidade de jogar no país que enfrenta uma crise sanitária sem precedentes, calou-se. Seja por covardia ou incapacidade, a única certeza é a decepção. “Quando nasce um brasileiro, nasce um torcedor”, diz o início o texto. Tenho a impressão de que a maioria dos brasileiros torcedores possam, quem sabe um dia, voltar a torcer pela seleção. Mas não torcerão pelos jogadores que a integram. O tal manifesto é uma vergonha.

Alguns patrocinadores já se movimentam para impedir a divulgação das suas marcas na competição, ao menos nos veículos brasileiros. Temem o óbvio, ou seja, fotos de jogadores se abraçando, sorridentes, comemorando uma vitória no campo. Ao fundo, a marca da patrocinadora estampada na placa de publicidade. E a manchete da notícia: Meio milhão de mortos.

É de se imaginar como será a comemoração dos jogadores caso vençam a competição. Sorririam na foto, ao lado da taça macabra? Soltariam a voz para gritar “É campeão!”? Brasil, campeão do que? Do número de mortos? Hoje, o país ainda é vice. Mas dá pra ganhar.

Publicitário, escritor e membro da União Brasileira de Escritores-SP