Denúncia do ‘JB’ em 2004 gerou a ação penal de maior impacto da história do STF 

Julgamento do mensalão começa na tarde desta quinta-feira e só deve acabar em setembro 

Por Luiz Orlando Carneiro, Brasília  

Há quase cinco anos, no dia 28 de agosto de 2007, o plenário do Supremo Tribunal Federal concluiu o até então mais longo julgamento de sua história (cinco dias de sessões, 30 horas de votos dos ministros), e transformou em réus todos os 40 denunciados pela Procuradoria-Geral da República no inquérito do mensalão do PT. Inclusive os 24 acusados de formação de quadrilha para a prática de crimes como os de corrupção ativa e passiva, à frente dos quais o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, os ex-dirigentes do PT José Genoino e Delúbio Soares, e o publicitário-empresário Marcos Valério, o principal operador da “sofisticada organização criminosa”, conforme a denúncia apresentada pelo procurador-geral da República da época, Antônio Fernando de Souza. 

Nesta quinta-feira, o ministro Joaquim Barbosa, relator do processo — hoje com 38 réus e quase 70 mil folhas (totalmente digitalizadas) — inicia o que será o mais longo julgamento do STF — previsto para durar mais de um mês — com a leitura reduzida de seu relatório de 120 páginas, há muito disponibilizado. Logo depois, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, terá cinco horas para fazer a sua sustentação oral, na qual vai reforçar as denúncias referentes a 36 dos 38 réus, e solicitar a absolvição, por falta de provas suficientes, de Luiz Gushiken (ex-ministro de Comunicação Social no primeiro governo Lula) e de Antonio Lamas (irmão do ex-tesoureiro do antigo PL Jacinto Lamas, também réu). 

Furo do ‘JB’ 

Em 24 de setembro de 2004, o Jornal do Brasil foi o primeiro veículo de comunicação a empregar o termo “mensalão”, em matéria dos repórteres Paulo de Tarso Lyra, Hugo Marques e Sérgio Pardellas. A informação foi creditada ao deputado Miro Teixeira, já ex-ministro das Comunicações do governo Lula, que teria sido avisado deste hábito por outros parlamentares. Em seguida o JB publicou correção informando que a fonte foi um presidente de partido da base aliada. 

Seis meses antes (28/2/2004), o repórter e analista político Carlos Chagas publicara, na Tribuna da Imprensa, artigo em que já dava notícias sobre a existência de incalculáveis recursos na “tesouraria” do PT, administrados pela cúpula do partido (citados José Dirceu, José Genoino e Delúbio Soares), com a ajuda de um “operador profissional” (o publicitário mineiro Marcos Valério). Não havia ainda referência explícita à existência de um “mensalão” pago a parlamentares para apoio automático aos interesses governistas.  

Depois de comentar que “ruim de grana o PT nunca esteve”, Chagas assinalou: “Foi a partir da recente campanha presidencial, porém, que o dinheiro começou a sobrar. Com a posse do presidente Lula e a nomeação de milhares de petistas para a administração federal, mais recursos apareceram. A preocupação do presidente anterior, José Dirceu, e do atual, José Genoino, passou a ser como administrar a bolada, cujo montante, para dizer a verdade, só uns poucos conhecem. Mas é muito grande. Quem passou a sofrer foi o diretor-financeiro do PT. Delúbio Soares jamais pensou em tornar-se banqueiro ou investidor no mercado. Assim, para ajudá-lo, foi buscar um operador profissional, encontrado na pessoa do publicitário mineiro Marcos Valério, da SMPB, de Belo Horizonte. Agência por sinal aquinhoada em 2003 com contratos de publicidade no valor aproximadamente de R$ 150 milhões, provindos do Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Correios e Telégrafos e Petrobras. Há algum tempo a capital mineira funciona como uma espécie de caixa central do PT, de onde flui numerário bastante para as despesas partidárias, agora com ênfase para as campanhas de outubro. No caso, até servindo a outros partidos, como o PP, PL e PTB, cujos emissários não raro deixam o Aeroporto da Pampulha com malas recheadas, em espécie”.  

A denúncia em 2007

Na denúncia de 135 páginas acolhida pelo STF em agosto de 2007, o procurador-geral Antônio Fernando de Souza destacou que “para formar a base de sustentação do governo”, José Dirceu, Delúbio, Genoino e Sílvio Pereira “ofereceram e, posteriormente, pagaram vultosas quantias a diversos parlamentares federais, principalmente os dirigentes partidários, para receber apoio político do PP, PL, PTB e parte do PMDB”. Acrescentou que “para a execução dos pagamentos da propina”, os quatro integrantes do núcleo principal (“núcleo político-partidário”) valeram-se dos “serviços criminosos” prestados por Marcos Valério, seus sócios (Ramon Hollerbach, Cristiano Paz, Rogério Tolentino) e suas funcionárias Simone Vasconcelos e Geiza Dias. 

Ratificação agora 

Nas alegações finais já enviadas aos ministros do STF pelo atual procurador-geral da República, Roberto Gurgel, ele reafirma a denúncia original, no sentido de que “o esquema criminoso investigado na Ação Penal nº 470, que ficou conhecido nacionalmente como mensalão, foi engendrado e executado para atender às pretensões do núcleo político, comandado pelo então ministro-chefe da Casa Civil no governo Lula, José Dirceu”. 

>> AP 470 — Quadro de réus por crime 

A denúncia foi ratificada também dividindo o “esquema criminoso” por núcleos. De acordo com síntese preparada pela Secretaria de Comunicação Social da PGR, a situação dos réus em seus respectivos núcleos de atuação pode ser assim resumida: 

Núcleo político 

O núcleo político do esquema era chefiado por José Dirceu e imprimia as diretrizes de atuação dos demais envolvidos, que agiam sempre com vistas a alcançar os objetivos almejados pelo núcleo político. Em sua essência, o esquema consistia no repasse de recursos a parlamentares federais, tendo como contrapartida apoio ao governo federal.  

O núcleo político era composto pelo ex-ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu, pelo ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares, pelo ex-secretário-geral Sílvio Pereira, e pelo ex-presidente do partido José Genoíno. 

Segundo o chefe do MPF, “como dirigentes máximos do PT, tanto do ponto de vista formal quanto material, os réus estabeleceram um engenhoso esquema de desvio de recursos de órgãos públicos e de empresas estatais, e de concessões de benefícios diretos ou indiretos a particulares em troca de ajuda financeira. O objetivo era negociar apoio político ao governo no Congresso Nacional, pagar dívidas pretéritas, custear ganhos de campanha e outras despesas do PT”. 

Para Roberto Gurgel, as provas que instruíram a ação penal comprovam que os acusados integrantes dos três núcleos — político, operacional e financeiro — associaram-se de modo estável, organizado e com divisão de trabalho, para cometimento de crimes contra a administração pública, contra o sistema financeiro, contra a fé pública e lavagem de dinheiro. 

Em relação aos integrantes do núcleo político, o procurador-geral pede a condenação de José Dirceu, Delúbio Soares e José Genoíno pelo cometimento dos crimes de quadrilha, corrupção ativa, e peculato. 

José Dirceu — “Ao assumir o cargo de ministro-chefe da Casa Civil em janeiro de 2003, José Dirceu passou a ter como missão a formação da base aliada do Governo Federal dentro do Congresso Nacional. O objetivo era fortalecer um projeto de poder, de longo prazo, do Partido dos Trabalhadores”.  Afirma Gurgel que Dirceu resolveu, então, subornar parlamentares federais, principalmente dirigentes partidários de agremiações políticas. Conforme as investigações, para alcançar seu objetivo, Dirceu lançou mão da estrutura do PT, utilizando-a, por meio de sua cúpula partidária, como instrumento para alcançar o objetivo estabelecido.  

Provou-se que o acusado, para articular o apoio parlamentar às ações do governo, associou-se aos dirigentes de seu partido e a empresários dos setores publicitário e financeiro para corromper parlamentares. “As provas coligidas no curso do inquérito e da instrução criminal comprovaram, sem sombra de dúvida, que José Dirceu agiu sempre no comando das ações dos demais integrantes dos núcleos político e operacional do grupo criminoso. Era, enfim, o chefe da quadrilha”, afirma o procurador-geral da República nos autos. 

Delúbio Soares — Conforme ainda as alegações finais da PGR, o então tesoureiro do PT integrou o grupo criminoso desde 2003, tornando-se o principal elo entre o núcleo político e os núcleos operacional (composto pelo grupo de Marcos Valério) e financeiro (formado pelos dirigentes dos bancos BMG e Rural).  

“Sob o comando de José Dirceu, coube a Delúbio Soares os primeiros contatos com Marcos Valério para viabilizar o esquema de obtenção dos recursos que financiaram a cooptação de partidos para a composição da base aliada do governo. Delúbio tinha a atribuição de indicar a Marcos Valério os valores e os nomes dos beneficiários dos recursos ilícitos. Além de indicar para onde iria o dinheiro desviado, a ação de Delúbio Soares, como integrante do grupo, não se limitou a indicar os beneficiários das propinas, tendo sido também o beneficiário final das quantias recebidas”.  

De acordo com as investigações, Delúbio utilizou-se do esquema de lavagem operacionalizado pelo grupo, enviando laranjas para o recebimento de valores nas agências do Banco Rural em Brasília e em São Paulo. O valor total percebido por Delúbio Soares foi de R$ 550 mil.

José Genoino — O então deputado federal e presidente do PT José Genoino sempre foi, conforme a PGR, o interlocutor político do “grupo criminoso”, cabendo a ele “formular as propostas de acordos aos líderes dos partidos que comporiam a base aliada do governo Lula”. Ainda conforme as alegações finais, como representante de José Dirceu, José Genoino, além de conversar com os líderes partidários, convidando-os a apoiar os projetos de interesse do governo, procedia ao ajuste da vantagem financeira que seria paga caso aceitassem a proposta. 

A operacionalização do pagamento ficava a cargo de Delúbio Soares, Marcos Valério, Rogério Tolentino, Cristiano Paz, Ramon Hollerbach, Simone Vasconcelos e Geiza Dias. Segundo Roberto Gurgel, os depoimentos colhidos durante a instrução da ação penal comprovam que os contatos com os partidos eram sempre feitos por José Genoíno.  

O procurador destaca que, “embora neguem o caráter ilícito da oferta, os depoentes trouxeram aos autos prova irrefutável de que o núcleo político do grupo criminoso, sob o comando de José Dirceu, obteve o apoio parlamentar mediante o pagamento de vantagens indevidas”. 

Sílvio Pereira — O secretário-geral do PT na época dos crimes, Sílvio Pereira, foi — ainda conforme o chefe do MPF — um dos responsáveis por uma área chave para o sucesso do mensalão: as indicações para o preenchimento de cargos e funções públicas no governo federal.

Apesar de não integrar o quadro funcional do governo, “Sílvio Pereira atuava nos bastidores do Palácio do Planalto, negociando as indicações políticas que, em última análise, proporcionariam o desvio de recursos em prol de parlamentares, partidos políticos e particulares”. 

“É incompreensível e inadmissível que um filiado do Partido dos Trabalhadores exercesse função própria dos servidores do Gabinete Civil, quando existia um corpo funcional do órgão incumbido para atender às demandas da pasta. Do ponto de vista da sua estrutura, a Casa Civil não tinha, como não tem, necessidade da utilização de membros do PT”, ressalta Roberto Gurgel. E acrescenta: “Não era possível a José Dirceu confiar aos servidores da Casa Civil a negociação ilícita que promovia com parlamentares. Por isso, recorreu aos seus companheiros de partido”. 

(Sílvio Pereira assinou acordo de “transação penal”, em troca do cumprimento de pena de 750 horas de serviços comunitários e, por causa disso, a ação penal contra ele foi suspensa). 

Núcleo operacional 

Conforme o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, o chamado grupo operacional do mensalão começou a atuar no fim de 2002, quando os candidatos José Serra (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) disputaram o segundo turno das eleições presidenciais. Marcos Valério, empresário-publicitário em Minas Gerais, pretendia viabilizar, na hipótese de vitória do PT, o “esquema ilícito de desvio de recursos públicos que já protagonizava no governo mineiro”. O publicitário já tinha um canal de diálogo com o PSDB desde 1998, fato que é objeto de inquérito (Inq 2.280), em curso no Supremo Tribunal Federal. 

O deputado federal Virgílio Guimarães (PT-MG) apresentou Marcos Valério a José Dirceu, que presidia o PT e era o principal coordenador da campanha de Lula. Para o MPF, o interesse do grupo do publicitário coincidiu com o propósito de Dirceu. “Marcos Valério, na condição de líder do núcleo operacional e financeiro, foi, juntamente com José Dirceu, pessoa de fundamental importância para o sucesso do esquema ilícito de desvio de recursos públicos protagonizado pelos denunciados” — está nas alegações finais do chefe do MPF. 

Segundo a peça processual, de mero financiador do projeto ilícito, Marcos Valério tornou-se homem de confiança de José Dirceu e personagem influente no governo petista, com poder até para negociar a formação da base aliada. O MPF acrescenta, ainda, que Delúbio Soares era o elo entre o núcleo político, comandado por José Dirceu, e o núcleo operacional, a cargo de Marco Valério.  

Núcleo financeiro 

Nas alegações finais, o procurador-geral da República destaca como principais integrantes do chamado núcleo financeiro do mensalão, investigado na AP 470, os seguintes dirigentes do Banco Rural, atuantes no período de janeiro de 2003 a junho de 2005: José Augusto Dumont (falecido), José Roberto Salgado, Ayanna Tenório, Vinícius Samarane e Kátia Rabello. 

Segundo Roberto Gurgel, o Banco Rural foi “peça chave no processo delituoso, financiando parcialmente o esquema, mediante a simulação de empréstimos bancários no valor de R$ 32 milhões; permitindo a mistura dos recursos obtidos via empréstimos com dinheiro público desviado por meio de contratos de publicidade com órgãos públicos; viabilizando a segura distribuição de recursos em espécie, sem comunicar aos órgãos de controle o destinatário final; e, por fim, não comunicando as operações suspeitas de lavagem de dinheiro aos órgãos de controle”. 

O procurador reforça a denúncia inicial no sentido de que o Banco Rural serviu aos “propósitos ilícitos” de Marcos Valério e de seu grupo desde, pelo menos, 1998. “Em 2003, quando definido o acordo delituoso com o núcleo central do grupo criminoso (José Dirceu, José Genoíno, Sílvio Pereira e Delúbio Soares), Marcos Valério, Ramon Hollerbach, Cristiano Paz e Rogério Tolentino imediatamente procuraram seu antigo parceiro, o Banco Rural, para que ingressasse nessa nova empreitada”, afirma. 

Conforme explica, as ações dos dirigentes do Banco Rural perpassaram todas as etapas do esquema ilícito, desde a sua origem (financiamento), passando pela sua operacionalização (distribuição) e, ao final, garantindo a sua impunidade (não comunicação das operações suspeitas). 

O MPF sustenta estar comprovado que Marcos Valério e Rogério Tolentino eram os principais interlocutores junto à cúpula do Banco Rural, relacionando-se diretamente a José Augusto Dumont, então vice-presidente do banco. Mas, para Gurgel, este não foi o único autor dos delitos praticados na instituição financeira, como querem fazer crer os demais acusados, integrantes do núcleo financeiro. “Aliás, há fatos delituosos consumados, ou cuja consumação perdurou (gestão fraudulenta) após a data da sua morte”, declara. 

Gurgel sublinha as sucessivas renovações dos empréstimos fictícios relatados na denúncia, autorizadas pelos demais dirigentes do Banco Rural — José Roberto Salgado, Kátia Rabello e Ayanna Tenório, que consumaram o crime de gestão fraudulenta. 

Em relação a Kátia Rabello — que integrou a cúpula decisória do Banco Rural desde abril de 1999 e assumiu o cargo de presidente em outubro de 2001 — Gurgel afirma que ela acompanhava os negócios que as empresas de Marcos Valério e seu grupo faziam com o banco, principalmente pelo notável volume de recursos que movimentava, o que lhe assegurava o status de cliente excepcional. 

O PGR diz que ela esteve reunida pelo menos duas vezes com o ex-ministro José Dirceu para tratar dos recursos repassados pelo Banco Rural (empréstimos fictícios) e da contraprestação que seria viabilizada, especialmente na liquidação do Banco Mercantil de Pernambuco.