'Cerveja não é uma bebida leve', alerta especialista aos motoristas
Débora Motta, Agência JB
RIO - A combinação de álcool e volante é um dos problemas mais sérios de segurança pública e saúde do país. Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) indicam que 80% de mortes no trânsito brasileiro ocorrem devido ao consumo de bebidas alcoólicas pelo motorista. O neurologista José Mauro Brás Lima, coordenador do Centro de Estudos de Prevenção e Reabilitação do Alcoolismo (CEPRAL-UFRJ), se dedica ao tema há mais de 20 anos e alerta para o aumento do consumo de álcool pelos jovens e para o perigo da cerveja, bebida erroneamente considerada, pelo senso comum, mais fraca do que a cachaça ou o vinho.
- Acidentes de carro com vítimas fatais representam a primeira causa de morte na faixa etária de 18 a 29 anos, sendo que mais de 70% estão relacionados com o uso nocivo de álcool. Segundo a OMS, morrem 1,2 milhão de pessoas por ano em acidentes nas estradas - diz o professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Além de aumentar o número de acidentes de trânsito, o álcool está ligado à violência urbana, colaborando para o crescimento da taxa de homicídios e suicídios.
- Mais de metade dos homicídios têm a ver com o abuso de álcool e pelo menos 30% dos suicídios estão ligados ao alcoolismo. Para se ter uma idéia da relação das bebidas com a violência, o índice de homicídios em Diadema (SP) teve queda de 47% quando bares e botequins foram obrigados a fechar as portas depois das 23h. Antes da medida, o índice de homicídio era de 80 mortos para cada 100 mil habitantes, muito superior ao do país, que é de 45 - explica o doutor José Mauro, que se prepara para o lançamento da segunda edição do seu livro "Alcoologia - alcoolismo na perspectiva da saúde pública", pela Editoria Medbook, no mês que vem.
O Brasil tem uma das mais fortes indústrias de bebidas alcoólicas do mundo:
- Existe uma forte tendência de alta da produção e do consumo de bebidas alcoólicas. Somos um dos maiores produtores de álcool do planeta: o terceiro em cerveja e o primeiro em bebida destilada (cachaça). Estamos na frente até da Inglaterra e da Rússia. Já a indústria da cerveja dobrou sua produção de cerca de 4.8 bilhões de litros/ano, em 1995, para cerca de 10.0 bilhões litros/ano em 2005 - constata.
Preferência nacional
O consumo da cerveja, a bebida preferida dos brasileiros, é estimulado desde cedo no meio social. Muitas vezes os jovens se acostumam a tomar uma cervejinha nas reuniões de família. O próprio trote dos calouros nas universidades é regado a chopadas. Porém, a bebida aparentemente mais leve que outras, como a cachaça ou o vinho, tem efeito alcoólico similar.
- A cerveja não é uma bebida leve por ter apenas 5% de teor alcoólico. Tomar uma lata de cerveja (350ml) significa ingerir 17,5ml de volume de álcool, que corrigido pelo fator de densidade do álcool (0,8) representa 13 gramas de álcool puro. Se for uma tulipa de chope (300ml), seria 12g de álcool puro. Considerando o vinho com teor alcoólico entre 12 e 13%, consumido em taça de 150ml, a conta nos indica que ingerimos cerca de 18ml de álcool que corrigido por (0,8), chega a 14g de álcool puro. Já no caso da cachaça, com teor alcoólico de 40%, a dose padrão é de 40ml, o que representa 16ml de álcool por dose, que corrigido pelo fator densidade (0,8), representa 13g de álcool puro por dose - contabiliza o especialista.
- Portanto, ao beber uma dose de cachaça ou uísque, uma taça de vinho, uma tulipa de chope ou uma lata de cerveja, estaremos consumindo cerca de 12 a 14g de álcool puro. Isto é, a mesma quantidade de álcool qualquer que seja o tipo de bebida alcoólica. Assim, é fácil constatar que a cerveja não é bebida leve e provoca sobre o organismo, ou melhor, sobre o cérebro, o mesmo efeito que qualquer outro tipo de bebida alcoólica, considerando as respectivas diferenças devido à concentração - ressalta o médico. - Infelizmente o efeito real da cerveja não é divulgado por autoridades que têm interesse em continuar fazendo lobby no Congresso.
O número de mortos em acidentes de trânsito nos fins de semana e feriados sobe devido ao consumo de álcool e atinge especialmente os jovens.
- De sexta a domingo pelo menos de dois a três jovens morrem só na Avenida das Américas e Lagoa. O jovem gosta de correr risco por natureza e o álcool tem efeito desinibidor, daí a tendência é abusar, misturar bebidas e morrer no volante - diz José Mauro.
Hugo Carvalho, de 22 anos, costuma sair à noite para baladas na Zona Sul do Rio e beber até o limite que a comanda das boates permite, com o argumento de não ficar no prejuízo.
- Uma prática muito comum das boates cariocas é a consumação, que incentiva o cliente a beber mais. Se você paga, por exemplo, R$ 80 de consumação numa boate em Ipanema, você se sente estimulado a beber excessivamente, mesmo já estando satisfeito, porque você quer consumir tudo o que tem direito. Todos os meus amigos também pensam assim - conta, acrescentando que bebe geralmente 10 latas de cerveja antes de dirigir.
Seguindo o senso comum, Hugo demorou a acreditar que a cerveja seja tão pesada quanto a cachaça.
- Fiquei surpreso com o resultado dessa pesquisa. A sensação que tenho é que beber uma lata de cerveja é muito mais tranqüilo que beber uma dose de cachaça - afirma o jovem publicitário.
Bebidas, teor alcoólico e publicidade
A revisão do nível de alcoolemia (nível de álcool por litro de sangue) permitido no Brasil é uma medida apoiada pelo doutor José Mauro para reduzir os prejuízos causados pelo álcool. O limite máximo permitido pelo Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) é 0,6, mas países da União Européia já diminuíram ou estão em campanha para diminuir esse limite para os motoristas. No Japão, a tolerância é zero.
- O limite brasileiro deveria baixar para 0,2. Fiz uma pesquisa com dados fornecidos por testes de alcoolemia realizados pelo Instituto Médico Legal (IML). O teste detecta níveis de álcool no sangue superiores ao nível de alcoolemia permitido em 60,2% dos casos analisados no teste. Mas os outros 38,3% estavam abaixo de 0,6, com índices entre 0,1 g/l a 0,59 g/l, o que evidencia que é um limite fraco, que depende da sensibilidade de cada pessoa e de co-fatores como estresse, sonolência e fadiga a ingestão de álcool - alerta.
O coordenador do CEPRAL também defende o controle sobre campanhas da propaganda de bebidas, especialmente da cerveja, que associam o consumo do álcool à alegria e à vitalidade:
- Só a campanha do experimenta fez aumentar a produção de determinado fabricante de 1,7 bilhão de litros para 2.2 bilhões. As campanhas de publicidade são inteiramente voltadas para o público jovem, o que é preocupante. Dados recentes da SENAD (Secretaria Nacional Anti-Drogas), de 2006, mostram que aumentou em 10% o número de alcoólatras, isto é, milhões de pessoas doentes. Foram, sobretudo, os segmentos de jovens e mulheres que mais contribuíram para esse quadro alerta o médico.
Ambas as medidas estão entre os objetivos constituintes do plano da Política Nacional sobre o álcool, lançada em maio deste ano, que tem como outros pontos a inspeção dos pontos de venda de bebidas em rodovias federais e estabelecimentos próximos a escolas e faculdades.
- Concordo integralmente com esse plano. Temos que partir da educação para reduzir os prejuízos do álcool à saúde pública. Trabalho nas faculdades de Medicina e Psicologia da UFRJ com a primeira disciplina voltada totalmente para álcool e drogas numa universidade pública brasileira. Gostaria que ela fosse matéria obrigatória nas escolas - conclui o neurologista.
