Dom Bolsonaro de la Mancha

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Por ROGÉRIO CASTRO

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A história do Cavaleiro da Triste Figura, pseudônimo dado a Dom Quixote pelo seu fiel escudeiro Sancho Pança numa das batalhas imaginárias do cavaleiro andante, parece ter encontrado paralelo na vida real quatro séculos depois de ter vindo à luz e passado, desde então, a povoar a imaginação do público. Na história contada por Miguel de Cervantes, um fidalgo da região da Mancha, na Espanha, após mergulhar fundo e de modo apaixonado horas a fio em leituras de cavalaria, perde o senso da realidade e começa a pensar e a agir como os personagens dos livros de cavalaria. Convenceu-se de que, tal qual os cavaleiros andantes, deveria travar encarniçadas batalhas contra algozes praticantes de injustiças, além de proteger donzelas e oprimidos. Estes estariam sempre em perigo, à espera de alguém que lhes pudesse salvar de verdugos. E este alguém seria justamente Dom Quixote de la Mancha – nome pelo qual o próprio fidalgo decide se chamar.

Portando armas e empunhando uma lança, Dom Quixote sai pelo mundo montado em seu cavalo, Rocineide, na companhia de Sancho Pança, escudeiro que decide lhe acompanhar na esperança de ver realizada a promessa do seu amo lhe recompensar com uma ilha, da qual seria nomeado governador. Logo nas primeiras andanças Sancho vai se dando conta do estado de completo delírio do seu amo. Jurando avistar gigantes, Dom Quixote põe-se a lutar e a desferir golpes contra esses terríveis predadores, mesmo após Sancho Pança adverti-lo se tratar de moinhos de vento. Vendo exércitos no lugar de rebanhos de ovelhas, castelos ao invés de vendas, passando a ver condenados pelo rei como vítimas de injustiças, bacias de barbeiro como elmos, Quixote coleciona desventuras, mas, mesmo assim, nenhuma delas lhe faz recobrar o sentido. Para curar os ferimentos das surras que ele e o seu escudeiro levavam, acreditava num remédio milagroso: o bálsamo de Ferrabrás.

Em estado de alucinação, mesmo quando toma as coisas pelo que elas são acredita que estas estão desfiguradas; e esta desfiguração tinha, para ele, uma causa: feitiço. O cavaleiro andante acreditava, tal qual nos livros de cavalaria, nos poderes encantados da feitiçaria. E foi assim que ele jurou estar sob efeito de uma, quando, após se dirigir à Toboso ansiando encontrar a sua amada, Dulcineia, ao avistar uma aldeã, julgou não conseguir ver nela o rosto da amada, a quem acredita ser uma princesa. O feitiço que lhe puseram nas vistas, dizia, era como uma catarata que o impedia de vê-la em sua formosura.

Em 2021, no Brasil, temos um presidente que acredita ser messias. Ungido pelos céus, Jair Bolsonaro crê que a sua missão é acabar com o comunismo no país. No tocante à pandemia, diz ele, ninguém precisa se preocupar: o vírus vai embora sozinho. Nada de máscaras, nada de pânico, nada de vacina! Diante da evidência do contágio se dar de modo interpessoal, as máscaras de proteção facial “são o último tabu a cair”, disse ele em novembro passado, três meses depois de ter sentenciado que a eficácia delas era “quase nenhuma”. Nessa direção, na semana passada, apresentou “um estudo” que supostamente mostraria os “efeitos colaterais” das máscaras em crianças. “Não vou entrar em detalhe porque tudo deságua em crítica em cima de mim”, abreviou.

Quando os fatos lhe pegam desprevenido, julga-os enganadores – certamente urdidos por adversários que querem lhe impedir de ver a verdade. Na iminência de colapso do sistema de saúde por excesso de pacientes acometidos pelo novo coronavírus, no último domingo acudiu-lhe uma ideia para retrucar os seus contendores. Para debelar o “pânico”, Dom Bolsonaro postou numa de suas redes sociais a notícia do falecimento de um jovem por conta de falta de leitos de UTI onde pudesse encontrar atendimento no ano de 2015, em Goiás. “A saúde no Brasil sempre teve seus problemas. A falta de UTI era um deles e certamente um dos piores”, escreveu. A estultice ignora simplesmente a existência de uma emergência sanitária mundial.

Mas o combate aos gigantes não para por aí. Alegando ser desnecessárias, o presidente que acredita ter a missão de libertar o seu povo propugna a imunização natural em detrimento das vacinas. Mesmo as evidências mostrando ser a vacinação o caminho mais promissor para a saída da pandemia, o messias, pressionado a comprá-las, age a contragosto, retarda tanto quanto pode a contratação dos imunizantes na vã esperança de uma imunização natural corroborar a sua tese visionária. Isso para não falarmos do spray nasal de Israel, o novo bálsamo de Ferrabrás.

Na batalha da vida real contra um inimigo invisível, onde as pessoas tombam sem oxigênio pelo agressor lhes roubar, Dom Bolsonaro conta com os seus escudeiros. Estes, diferente de Sancho, não veem os desatinos do seu amo. Chamam-no mito! Excetuando alguns auxiliares, que, embora percebam os desvarios do chefe, terminam por se ajustar à sua vontade, a maioria dos seguidores acredita cegamente nas suas palavras. Resta-nos saber se, diante da atual calamidade, resultarão eles escarmentados, ou se, como Alonso Quijano, o Bom, dar-se-ão conta dos seus disparates no leito de morte.

Rogério Castro é professor universitário e Doutor em Serviço Social/UFRJ. Atualmente, encontra-se vinculado ao Mass/Uece pelo PNPD/Capes.