Transformação ou colapso

Por AURÉLIO WANDER BASTOS E LIER PIRES FERREIRA

Jeremy Rifkin, escritor americano e presidente da Fundação de Tendências Econômicas - organização não governamental que investiga os impactos globais das novas tecnologias - tem dito que a economia do petróleo e seus desdobramentos tendem a levar a humanidade à extinção.

 

Para o sociólogo estadunidense, a pandemia da Covid-19 e outros cataclismas socioambientais presentes e futuros decorrem de um modelo econômico que exaure o meio-ambiente. E, portanto, é necessário empreender um verdadeiro Green New Deal para a regeneração da vida. Rifkin afirma que a pressão produtiva pode colapsar o planeta. E que é fundamental uma transformação radical nas relações entre os seres humanos.

 

A visão de Rifkin sobre a relações sociopolíticas, produtivas e ambientais pode nos ajudar a entender o dilema político do presidente Jair Bolsonaro.

 

Desde sua eleição, Bolsonaro adota uma postura autoritária apoiada em retórica de confronto com diferentes segmentos sociais e com os demais poderes da República. As linhas de conflito são de duas ordens. A primeira é marcada pelos embates estritamente institucionais provocados pelo próprio governo na implementação de suas propostas e pelos seus apoiadores em ações de guerra ideológica. A segunda linha refere-se aos ataques perpetrados contra os movimentos sociais e as forças políticas de esquerda, dentro e fora do Parlamento Federal.

 

No que se refere aos conflitos institucionais, o governo Bolsonaro tem aberto diversas frentes de batalha, como mostram as ações de ocupação desordenada da Amazônia, face ao avanço de ruralistas e garimpeiros sobre áreas indígenas ou de proteção ambiental, e à questão da pandemia, cuja inconsequência governamental conflita com as preocupações e esforços das comunidades de saúde, bem como com os anseios e necessidades gerais da sociedade. Ainda nessa seara, também graves são as ações de seus apoiadores, que se mobilizam para a difusão de princípios ideológicos radicais e se expressam com palavras de ordem flagrantemente anticonstitucionais.

 

Já no que concerne aos conflitos com os movimentos sociais e as forças de esquerda, não são poucos os pronunciamentos do governo ou de seus apoiadores contra trabalhadores sem-terra, movimentos negro, LGBTI+ e sindical, bem como contra partidos ou personalidades políticas de esquerda. A par dessas iniciativas, o uso sistemático de "fake news" e a questão crucial de o presidente da República em querer conhecer informações sigilosas da Polícia Federal previamente à conclusão dos inquéritos ajudam a emoldurar um cenário de afronta ao Estado democrático de direito.

 

As diatribes do capitão-presidente e de seu séquito contra os poderes constituídos e as organizações civis têm provocado uma sensível transformação nas relações políticas brasileiras. Por um lado, forças minimamente comprometidas com o processo democrático ampliaram seus diálogos recíprocos, buscando compor alianças capazes de enfrentar o bolsonarismo já nas eleições de 2020. Por outro, os poderes constituídos, no limite máximo amparado pela constituição, procuram limitar as ações do presidente, evitando uma gestão autocrática do Estado. É nesse contexto que, por exemplo, se situa a manifestação lapidar exarada pelo ministro Edson Fachin sobre a questão das "fake news".

 

As reações fixadas pelos poderes constituídos e pelo conjunto mais amplo da sociedade civil, inclusive profissionais de saúde, cientistas, professores, advogados e jornalistas, deixaram o governo na defensiva. Sem legitimidade por questões tão díspares como a má gestão da pandemia da Covid-19, cuja conduta errática tem sido até aqui decisiva para a morte de mais de 60.000 brasileiros, e o inquérito das “rachadinhas”, que tende a fulminar seu filho-senador, Flávio Bolsonaro, o presidente se vê pressionado, ainda, pela desidratação de seus índices de popularidade.

 

Acrescente-se, ainda, a falta de perspectivas na administração da Economia, que, embora operada pelo ultraliberal Paulo Guedes - um nome afinado com o capital financeiro -, entrou em recessão ainda no primeiro trimestre de 2020, ou seja, antes que os primeiros efeitos da pandemia pudessem se fazer sentir, segundo dados da Fundação Getúlio Vargas.

 

Atordoado e, cada vez mais, ependente do círculo militar que o assessora, Bolsonaro se vê compelido a mudar. É por isso que se acoitou nos braços do Centrão, grupo político fisiológico que esteve na base de todos os governos da Nova República, mas cuja fidelidade aos mandatários de plantão é tão débil quanto uma linha podre.

 

O presidente demitiu Weintraub e seu pretenso sucessor, o “quase” doutor Carlos Decatelli, e busca um nome de consenso para o Ministério da Saúde, após a passagem relâmpago do “eloquente” Nelson Teich. Também é por isso que adota medidas paliativas para os trabalhadores desocupados em razão da pandemia e procura adotar um tom político conciliador com o Legislativo e o Judiciário. Experiente na vida política, Bolsonaro sabe que “sua batata está assando”.

 

Embora a força do Executivo seja grande, Bolsonaro está acuado. Ele sabe que tem que mudar para que seu governo não colapse. Para o país, no entanto, a questão é saber se o presidente conseguirá inaugurar uma nova fase em seu governo, menos conflitiva e mais dialogal. E que mantenha a civilidade que lhe castra o ego. Quem viver, verá.

Aurélio Wander Bastos é doutor em Ciência Política, professor emérito da Unirio (Ciências Políticas e Jurídicas), advogado.

Lier Pires Ferreira é PhD em Direito, professor titular do Ibmec e do Colégio Pedro II.