O coronavírus e o trade-off entre saúde e economia

Por CAROLINA MIRANDA CAVALCANTE

“Ora, esses governos, em vez de nos apoiarem, como seria demonstração de elementar humanidade e duma consciência cultural efectivamente europeia, decidiram tornar-nos em bodes expiatórios das suas dificuldades internas, intimando-nos absurdamente a deter a deriva da península, ainda que, com mais propriedade e respeito pelos factos, lhe devessem ter chamado navegação.” (Saramago, p.146)

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Nesse trecho do romance “A Jangada de Pedra”, de José Saramago, o governo português se pronuncia sobre as críticas direcionadas aos governos ibéricos por não tomarem medidas para que a península deixe de navegar pelo Atlântico. O insólito evento de uma península que se desprende do continente e começar a vagar pelo oceano é, contudo, seguido pela igualmente insólita exigência de medidas políticas que interrompam esse movimento, ainda que inexplicável, das forças da natureza. Pode parecer uma demanda absurda, mesmo na ficção, mas não é muito diferente da forma como se tem lidado com o coronavírus atualmente.

O debate relativo à quarentena sugere um trade-off entre saúde e economia, em que se poderia escolher entre uma combinação de um grau ótimo de isolamento social e um determinado volume de produção. Este trade-off entre saúde e economia nos forneceria dois cenários: (i) maior isolamento social, potencialmente salvando mais vidas, com maior perda em termos de produto; (ii) menor isolamento social, com provável colapso do sistema de saúde, que salvaria menos vidas, com menor perda em termos de produto. Mas esse trade-off realmente existe?

Um trade-off pressupõe a capacidade de escolher entre cenários e em cada um deles arcar com custos de oportunidade. Esta é outra maneira de dizer que toda decisão envolve custos e benefícios. Vejamos as escolhas que efetivamente estão sob controle humano. Especialistas em infectologia associam o sucesso na contenção da pandemia do covid-19 a medidas de isolamento social. O isolamento social minimizaria o número de infectados, permitindo ao sistema de saúde de tratar os doentes mais graves. A redução na circulação de pessoas nas ruas teria por objetivo a contenção do potencial de circulação do vírus, uma vez que o vírus não se move sozinho, precisando de nosso deslocamento para carrega-lo do ponto A ao B. No que concerne à crise sanitária, o que se pode fazer no curto prazo é controlar o número de infectados, permitindo que o sistema de saúde seja capaz tratar os doentes com os recursos disponíveis no momento. Essa é a ideia da quarentena como instrumento de suavização da curva de contágios.

A crise econômica possui características diversas. Quando se fala em “salvar a economia”, os agentes econômicos percebem essa afirmação de modo diverso. Empresários e rentistas entenderão por “salvar a economia” a manutenção de um fluxo de produto e renda que permita a valorização de seus ativos. Para o trabalhador, “salvar a economia” significa a provisão de meios de satisfação de suas necessidades humanas. Mas o que é a economia? Dentre as diversas formas de compreensão do termo, certo é que a economia não possui o mesmo estatuto ontológico de um vírus, um ente do mundo biológico. O isolamento social evidenciou algumas coisas importantes, uma delas é o caráter social da produção. Se a sociedade fosse um agrupamento de indivíduos que buscam seu bem-estar de forma isolada, a quarentena não teria o menor efeito sobre a economia. Talvez possamos concordar que a economia é o campo no qual as pessoas estabelecem relações de produção e reprodução da vida humana. Remetendo a economia a relações sociais de produção e fazendo justiça ao papel dos indivíduos na criação, manutenção e reprodução dessas relações sociais, não seria adequado afirmar que nossas ações frente à crise econômica estariam restritas à administração de variáveis econômicas que estão além do nosso desígnio, como as forças da natureza.

A crise sanitária é causada por um vírus, um organismo do mundo biológico, do qual fazemos parte, mas não podemos modificar através de políticas econômicas, medidas jurídicas ou mesmo protestos populares. Um vírus simplesmente não reage a nossas vontades e opiniões sobre sua forma de ser. Podemos, com muitas limitações, administrar as forças da natureza, mas jamais transformá-las a partir de nossas vontades. Ainda que não seja resultado do projeto de nenhum indivíduo em particular, a sociedade resulta dos nossos pensamentos, ações e mesmo de nossa inação. Dito de outro modo, não podemos simplesmente limitar a circulação do coronavírus através de medidas jurídicas e econômicas, mas podemos adequar nossas instituições para proteger a sociedade de seus efeitos.

As restrições quanto à crise sanitária são claras: não há outra forma de contenção da propagação do coronavírus sem isolamento social. Contudo, as possibilidades de contenção e amortecimento da crise econômica são mais amplas. O Estado possui instrumentos fiscais, monetários e jurídicos para lidar com a desaceleração econômica e seus efeitos sobre a sociedade. Evidentemente, a crise econômica está intrinsecamente ligada à crise sanitária, uma vez que as restrições de mobilidade desaceleram os fluxos de oferta e demanda, dificultando o funcionamento dos mercados. Contudo, a restrição de mobilidade é um dado sobre o qual não temos controle direto e imediato, uma vez que o vírus é insensível aos nossos interesses e vontades. No entanto, a manutenção da renda das famílias, que garantiria a satisfação de suas necessidades e daria uma sobrevida ao mercado, está no campo de ação das vontades e interesses humanos.

Não há como mudar o caráter letal do vírus, mas o governo possui instrumentos de política econômica e social para defender a sociedade dos efeitos da crise sanitária. Não é uma crise como a da década de 1930, uma vez que a retomada da atividade produtiva não dependerá apenas do estímulo à demanda. A retomada da atividade produtiva estará condicionada também à contenção da propagação do vírus. Deste modo, mesmo os instrumentos de política econômica disponíveis deverão ser repensados e remodelados para o enfrentamento de uma crise sem precedentes.

Por fim, para não deixar nossa pergunta inicial sem resposta, há uma intrincada relação entre a crise sanitária e a crise econômica, mas não há trade-off entre saúde e economia, uma vez que não podemos adequar a ação do vírus às nossas necessidades mercantis. Não há como negociar com o coronavírus. Não podemos adequar o comportamento do vírus à economia, mas podemos utilizar instrumentos de política econômica para proteger a sociedade frente à crise sanitária. Não estamos à mercê de um evento insólito que foge totalmente ao nosso controle, mas deixar de agir sobre o que efetivamente podemos governar nos deixará à deriva.

Carolina Miranda Cavalcante é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro