Um fio de esperança

Por ADHEMAR BAHADIAN *

Discordo dos que pensam ser Sua Excelência, Dr Paulo Guedes, posto Ipiranga da República, indiferente aos eventos no Chile. Muito pelo contrário, Paulo Guedes pretende corrigir os erros que levaram à insurreição social naquele país, adotando aqui medidas extraídas de seu laboratório neoliberal versão 03.

Sempre contrafeito com os remuos e reclamos das classes sociais mais oprimidas pelo engodo neoliberal, Sua Excelência pretende apresentar ao Congresso brasileiro, com a urgência devida, um projeto de reforma constitucional que criará a figura jurídica do estado de crise financeira ou coisa que o valha. Maneiroso, o posto Ipiranga pretende assimilar o estado de sítio ou de defesa nacional aos desarranjos contábeis da União, dos Estados e Municípios.

Nosso ministro não enxerga numa reforma tributária progressiva alívio para os graves problemas sociais que nos afligem, como afligem a Argentina, Equador e o Chile. Sua escolaridade vetusta-obsessivo-defasada-chicagorenitente considera a equação social um descaminho endógeno para o capitalismo selvagem tão caro aos neoliberais.

Sua Excelência certamente não leu, e terá raiva de quem o fez, o último livro de Piketty, "Capitalisme et Idéologie" a comprovar, com dados estatísticos, que adequadamente taxadas grandes fortunas e grandes heranças, há visível redução do desnível econômico da sociedade. Essa linha repugna o espirito empreendedor de Paulo Guedes como também à sua distorcida visão da democracia repugnam as noções de Estado impulsionador do desenvolvimento.

Os princípios a nortear a atividade econômica de Paulo Guedes estão fundamentalmente subordinados aos mandamentos inflexíveis do capitalismo financeiro internacional, cuja desregulação e livre trânsito são pilotis do edifício Balança-mais-não-cai do neoliberalismo. Em franca decomposição no mundo, mas reverenciado como o "dernier cri" neste nosso país atrasado, até mesmo nas escolhas das vanguardas que o governam.

As confusas e alambicadas declarações de altas autoridades brasileiras sobre mudanças climáticas, educação, direitos humanos, direito constitucional e relações internacionais contribuem em muito para confundir o pensamento cristalino de nosso povo que deseja ver cumprida a Constituição Federal e resguardados os direitos fundamentais do cidadão nela inscritos, como emprego, saúde e educação. Direitos esbulhados em nome de uma contabilidade nacional visivelmente mal intencionada e arrogante.

Não é por razão de Estado que a ordem do dia silencia, quando não se associa, diante da faina de tourear a Constituição e fazer dela o travesti viabilizador da iniquidade social e do estado autoritário. Corrida de touros cujo troféu é a carne eviscerada de um povo ingênuo e crédulo, dominado pelo pavor de um comunismo já morto, mas que o faz marchar contra espantalhos do passado e esqueletos que teimam em não se mostrar à luz do sol.

O projeto de calamidade fiscal, ou que diabo de nome tenha a proposta de emenda constitucional de Guedes, resultará em menos direitos para os trabalhadores e para o servidores públicos; seu articulado pseudo-jurídico reduzirá salários de servidores com o mecanismo perverso de corte de horas de trabalho. Um ócio sem dignidade e sem lazer.

Na mesma moenda, advoga-se cada vez mais a redução do papel incentivador e coordenador do Estado, a venda de nossas empresas públicas e a eliminação ou suspensão de concursos, além da reformulação de carreiras no setor público com vistas a adaptá-las a uma nova forma de gestão governamental, nos moldes da porta-giratória entre bancos privados, Banco Central e Ministério da Economia, onde dirigentes privados passam a ocupar cargos públicos sem passar por qualquer treinamento sobre a “res publica”.

Confunde-se assim a coisa pública com lucro privado, a cupidez argentária com o direito das gentes, de tal forma que se acredita passível de crítica o Supremo Tribunal Federal quando atua como garante da ordem e da Constituição. Como o desmancha-prazeres da jurisprudência imprudente e impudente. Do domínio do fato indeterminado, da interpretação tisnada de ideologia partidária.

Minha única esperança, um fio fino, frouxo, frágil e quebradiço dela, repousa na Câmara dos Deputados, eleita para defender nossos direitos constitucionais e não para se transformar em constituinte “ad-hoc", munida de espadas, floretes, facas, tesouras e corta-unhas a podar nossa rede de proteção social, sem a qual nos transformamos em mais um país marginal e duplamente colonizado. Canibalizado. Por índios brancos de olhos azuis.

Em Tempo: Há um novo livro na praça que esclarece em linguagem clara, elegante e escorreita os principais problemas econômicos que o Brasil vem vivendo nos últimos anos. “O Brasil não cabe no quintal de ninguém“ de Paulo Nogueira Batista Jr (Editora LeYa). Paulo é um economista brasileiro, voltado para o nosso desenvolvimento e nossos interesses nacionais, além de culto e senhor de sua pena. Qualidades raras hoje em dia.

*Embaixador aposentado