Guerra de posições

Por ADIR BEN KAUSS*

Como consequência do artigo da semana passada, vale discutir, neste, a afirmação do atual governo de acabar no Brasil com socialismo e com o politicamente correto pelo viés da cultura, do ensino e dos costumes. Os ideólogos da direita, entre eles, Olavo de Carvalho, para sustentar suas teorias conspiratórias vai a Gramsci buscar inspiração para justificar a bandeira anticomunista/socialista .

Antonio Gramsci (1891/1937), pensador político marxista italiano, escreveu sua obra principal - Cadernos do Cárcere - durante os seus muitos anos de prisão na Itália fascista de Mussolini. A ausência da liberdade não o impediu de ser um observador arguto e um teórico criativo dos principais acontecimentos do início do século passado, incluindo a revolução de 1917 e a constituição do Estado soviético.

Gramsci reviu alguns postulados de Marx no que diz respeito à possibilidade de a revolução social ocorrer não só pela luta de classes estrutural entre o capital e trabalho, mas também pela progressiva tomada de consciência da superestrutura da sociedade pelos seus diversos estamentos, como, por exemplo, a sociedade civil.

O principio basilar da teoria consiste em considerar que o Estado a serviço das classes dominantes utiliza-se sempre da força militar para defender o status quo. As classes oprimidas dependem de uma cruel e desigual luta de enfrentamento. A tarefa de conquistar a hegemonia política pelo confronto de armas poderia então ser substituída ou complementada por intermédio da linguagem, da cultura, da arte, da informação, da educação, de forma a influir no pensamento coletivo, cooptando grandes segmentos da sociedade voltados para a construção de um novo poder socialista igualitário com a consequente destituição do aparato militar que sustenta o velho Estado conservador.

Assim, a tomada do poder se daria de forma gradual e natural, sem derramamento de sangue, como quase sempre ocorre nos confrontos armados insurrecionais. O declínio da experiência soviética reforçou, para as gerações pós-guerra, o acesso aos escritos do conceito da “guerra de posições”, fulcro da estratégia gramsciana de chegada ao poder.

É importante salientar que essa compreensão da transformação da sociedade nunca foi unânime, nem tampouco hegemônica, dentro das esquerdas nacionais e internacionais. As ortodoxias sempre rejeitaram essa estratégia, considerando-a, com desprezo, um projeto reformista e não revolucionário, o que por si só invalida os argumentos da direita de que haveria um plano culturalista e identitário urdido em marcha acelerada para a tomada do poder.

A verdade é que Gramsci só foi devidamente lido, estudado e compreendido no final do século passado. Pouco tempo para que seja decodificada em manual de prática política uma teoria tão inventiva e sofisticada que contrariava a “guerra ofensiva” dos comunistas do século passado. Mais ainda, seria quase impossível, do ponto de vista intelectual e de práxis social, vencer as divergências e contradições no seio da própria esquerda de modo a se construir um plataforma política unitária capaz de alterar o estado de anomia em que se encontra grande parte da massa trabalhadora em nosso país.

A construção pela direita desse suposto espectro assustador da desordem; da destruição da família pelas relações afetivas não binárias homem-mulher; da religião pela sua formulação criacionista do mundo, além de funcionar como bandeira conservadora de aglutinação política dos segmentos mais desinformados, objetiva refrear os movimentos sociais emancipatórios e evolucionistas que a sociedade brasileira vem progressivamente experimentando ao longo dos últimos anos e, principalmente, ameaçar a escola e a universidade como espaço laico do livre pensar indispensável ao aprendizado crítico e criativo.

É saudável que a sociedade brasileira evolua de forma harmoniosa e solidária entre seus cidadãos, enterrando os fantasmas persecutórios comuns na época da guerra fria. As teorias políticas são sempre complementares e espelham os conflitos de respostas inconclusivas ou insuficientes das que as antecederam. Rejeitar o pensamento evolutivo contínuo da humanidade é jogá-la nas trevas do pré-iluminismo.

* Arquiteto e urbanista