Crimes de João de Deus não prescrevem

Por Celeste Leite dos Santos*

Os recentes fatos envolvendo o médium João de Deus nos conduz à reflexão sobre a natureza jurídica dos delitos por ele praticados e o forçoso reconhecimento de que deve ser atribuída a imprescritibilidade, por se tratarem de Crimes Contra a Humanidade.

A pessoa que busca auxílio de natureza espiritual por razões de saúde física ou psíquica, ou mesmo com o escopo de busca de sua paz interior, encontra-se em típica situação de vulnerabilidade, que não se confunde com antiga presunção de violência prevista, por se tratarem de conceitos jurídicos absolutamente diversos.

A vulnerabilidade pode ser entendida como componente de um sistema ou situação de fato, em correspondência com a qual as medidas psíquicas de proteção da vítima estão ausentes, que permite que o agressor comprometa seu nível de segurança física, psicológica, sexual e social. A vulnerabilidade pode ser individual ou coletiva. Nessas hipóteses, o agressor, especialmente em casos sexuais, compromete o sistema psíquico individual ou da comunidade de referência, reduzindo ou eliminando o nível de proteção inerente a todos os seres humanos.

Nesse sentido, ao prever no Título VI – Dos Crimes Contra A Dignidade Sexual e no Capítulo I – Dos Crimes Contra A Liberdade Sexual, o legislador tutela não apenas a liberdade sexual individual como também coletiva. É irrelevante se perquirir sobre eventual consentimento da vítima, uma vez constatada a situação de vulnerabilidade coletiva. A esse respeito o art. 215 do Código Penal estabelece o delito de “Violação sexual mediante fraude”, in verbis: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”. Pena: reclusão de 2 a 6 anos.

Da análise do modus operandi do médium, temos que o aproveitamento da vulnerabilidade da vítima e da comunidade de referência está abarcada pela expressão “fraude” ou “outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação da vítima”. Ora, trata-se de simples interpretação analógica, uma vez que no elemento normativo mencionado se encontra previsto o conceito de abuso da vulnerabilidade das vítimas individuais e coletivas que buscam auxílio espiritual e, portanto, com seus mecanismos naturais de defesa comprometidos.

A reiteração da conduta destinada à coletividade de pessoas que frequentavam o local em que exercia suas atividades implicam no reconhecimento da existência de verdadeiro delito contra a humanidade, consoante previsão do Estatuto de Roma, ratificado em nossa legislação (art 7º, 1, “g” do Decreto 4388, de 25/9/2008).

A esse respeito, cumpre destacar que o mencionado diploma legal tem como fundamentação justamente o fato de que: “Tendo presente que, no decurso deste século, milhões de crianças, homens e mulheres têm sido vítimas de atrocidades inimagináveis que chocam profundamente a consciência da humanidade”. Violam, portanto, os bens jurídicos coletivos paz, segurança e bem-estar da humanidade. Por conseguinte, suas previsões possuem status normativo em nosso ordenamento jurídico, dentre as quais se destaca a imprescritibilidade dos delitos praticados contra a humanidade (art 29 do Decreto 4338/2008).

Ainda que nossos Tribunais não adotem a interpretação mencionada, o médium João de Deus estaria ainda sujeito em caráter complementar no caso de inação do Estado Brasileiro a julgamento pelo Tribunal Penal Internacional, devendo ser efetuada a sua entrega pelo Brasil, uma vez que tal instituto não se confunde com a extradição, esta sim com impedimento constitucional aplicável a brasileiros natos.

Em síntese, os delitos de natureza sexual tutelam não apenas a Liberdade e Dignidade Sexual de determinada vítima, mas da coletividade de mulheres que frequentavam o local em que o médium exercia suas atividades. Houve, portanto, violação aos direitos humanos fundamentais de todas as mulheres vítimas da violação sexual, sem prejuízo e eventual caracterização de delitos mais graves. Desse modo, deve ser reconhecida a imprescritibilidade do “jus puniendi” nacional e internacional, uma vez que encontra previsão expressa no Estatuto de Roma.

Espera-se que estas breves reflexões possam auxiliar as autoridades locais e internacionais no cabal esclarecimento dos fatos ante as centenas de vítimas mulheres no cenário mundial noticiadas pela grande imprensa.

* Promotora de Justiça, doutora em Direito pela Universidade de São Paulo, especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra e coordenadora geral dos grupos de estudos do MP-SP

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