Ford e Benetton

Por FERNANDO AUGUSTO MANSOR DE MATTOS*

O maior historiador do século 20, Eric Hobsbawm, ao comparar a Era de Ouro do Capitalismo (os 30 anos posteriores ao encerramento da Segunda Guerra), aos anos finais do século 20 (que ele chamou de “as décadas da crise”, em sua obra “Era dos extremos”), menciona que a primeira poderia ser simbolizada pelo Fordismo, enquanto os anos finais do século passado ele batizou de “Era da Benetton” (aliás, essa empresa ainda existe?; não sei – tomara que sim).

Uma leitura atenta, tanto de “Era dos extremos” quanto de outros livros que procuraram analisar os Anos Dourados do Capitalismo, permite ao leitor mais arguto compreender que o “fordismo” não se resumia a um modo de organizar a produção industrial, mas também a uma “construção social” na qual os extremos políticos tinham pouca relevância social e eleitoral, quando se firma um pacto entre o capital e o trabalho, de tal maneira que o primeiro aceita pagar mais impostos e os sindicatos de trabalhadores abdicam, na prática, da luta pelo socialismo ou algo que represente uma tentativa de superar a ordem capitalista.

Os Anos Dourados se caracterizaram, conforme mencionamos aqui recentemente (“Quando o capitalismo foi salvo de si mesmo”, em 28 de setembro deste ano), em redução das jornadas de trabalho sem redução dos salários, aumento da tributação, aumento do emprego e forte expansão de gastos com educação e saúde públicas. A ordem financeira internacional do pós-Segunda Guerra fundou-se no controle dos movimentos dos capitais financeiros, insulando, pelo menos em parte, os efeitos devastadores que os capitais voláteis e especulativos têm sobre a gestão das políticas econômicas nacionais. Nesse contexto, os dados oficiais de compêndios internacionais mostram que foi um período de grande expansão dos investimentos produtivos (gerando novas empresas ou ampliando as já existentes) e também – por isso mesmo! – de significativo crescimento do PIB nos países desenvolvidos.

A excepcionalidade daqueles tempos, bem lembra Hobsbawm, devia-se ao fato de que aquele notável crescimento econômico fora acompanhado por melhoria da distribuição de renda, ou seja, pela redução da desigualdade em quase todos os países capitalistas. Os trabalhos recentes de Thomas Piketty também ilustram essa realidade, assim como séries históricas de dados em publicações do Banco Mundial e do FMI, entre outras instituições.

A “virada” se deu entre o fim dos anos 1970 e o início dos anos 1980. As vitórias de Thatcher, na Inglaterra, e de Reagan, nos EUA, captavam o sentimento que começava a mudar nessas sociedades, em grande medida contextualizado pelo que também vinha ocorrendo em termos de desmoronamento da ordem financeira internacional que havia sido construída no pós-Segunda Guerra. As medidas de desregulamentação dos mercados financeiros lhes trouxeram instabilidade, mesmo com (ou por isso mesmo) maiores taxas reais de juros em vigência em todos os países, com efeitos imediatos sobre a geração de riqueza produtiva (novos investimentos) e também na forma de organização da produção – daí a comparação com a Benetton, que simbolizava uma linha de produção mundial, em que cada etapa do processo produtivo era feita em locais diferentes (a etapa de maior agregação de valor, geralmente, nos países-sede das empresas). Disso resultou uma época de menor crescimento econômico (especialmente nos países europeus), muitas vezes “combatida” com menor regulamentação também dos mercados de trabalho, sob a promessa (eterna) de que isso geraria mais empregos. O que se viu, pelo contrário, foi maior precarização do trabalho, queda de arrecadação tributária e previdenciária, bem como ampliação da desigualdade. Sobre este último ponto, o professor James Galbraith (Universidade do Texas), um dos principais pesquisadores sobre o tema, associa diretamente flexibilização de mercados de trabalho com ampliação da desigualdade. Para ele, são quase sinônimos.

* Professor e pesquisador na Faculdade de Economia da UFF; pesquisador visitante na Universidade de Columbia