Mais do que o desassossego, caro poeta

Por Álvaro Caldas*

Folheando as páginas de seu “Livro do desassossego”, caro Fernando Pessoa, ocorreu-me uma repentina vontade de lhe escrever uma carta. Em meio às apreensões e agressões que nos cercam, fui à estante à procura de um livro com o qual pudesse compartilhar minhas inquietações. Encontrei logo o seu, ao lado de outros dois autores de grande poder de imaginação. Antes de mais nada, preciso lhe dizer que estamos vivendo um momento sombrio, quase diria apocalíptico, sob a ameaça de um terremoto devastador. Que não será como o de Lisboa, mas pode soterrar nossa jovem democracia, aquela plantinha frágil de que falou o político baiano Otávio Mangabeira.

Na estante, você estava entre seus amigos Kafka e Borges, dois magistrais criadores que nos transportam a territórios desconhecidos, que não dominamos, que podem nos causar angústia e medo, mas também nos oferecem o que chamamos de encanto. Em seus livros, o homem parece pequeno diante de um poder maior que o massacra. Kafka, você sabe, revela seu temor ao poder em todas as suas formas, como deixou nos seus “O processo” e “Colônia penal”. Não falaremos agora de Gregor Samsa, aquele burocrata que despertou um dia metamorfoseado numa barata.

Numa cena de um de seus contos, ele descreve o que existe de animalesco no poder, que pode agarrar o cidadão pelo pescoço até estrangulá-lo. É esta a situação em que nos encontramos. Um poder totalitário nos ameaça. Uma situação absurda, que nos faz recordar um tempo de horrores ainda recente, cujos mortos continuam até hoje desaparecidos. São pessoas conhecidas que foram presas e torturadas em delegacias e quartéis e, de repente, deixaram de existir.

Trata-se apenas de uma eleição presidencial, mas a história mudou com o aparecimento de um candidato sinistro, que agride as mulheres e os gays, que defende os torturadores, que exibe armas em comícios e fala em Deus e corrupção. O país, poeta, dividiu-se entre a política e a antipolítica, no caso a guerra. A guerra não dialoga, por princípio extermina. Os que fazem a política, um professor à frente, não conseguiram se unir numa frente comum de ideias e projetos, e assim caminhamos para o abismo.

Se esperava encontrar algum conforto na literatura, quebrei a cara. Entre os seus vizinhos na estante deparei com a “História universal da infâmia”, uma reunião de tipos infames recriados por Borges, que utilizou a magia e a imaginação para compor sua galeria universal de facínoras. Entre eles, o “Provedor de iniquidades Monk Eastman”, um farsante que despreza a lei e a moralidade, personagem ideal para representar o capitão candidato que se recusa a comparecer a debates por não ter ideias, que fala uma linguagem chula, que confraterniza com policiais militares em um quartel aos gritos de “Caveira!”, símbolo do batalhão.

Caríssimo poeta, o desassossego de que falo pulsa em seu diário íntimo. Em seus devaneios e confissões narradas pelo ajudante de guarda-livros da cidade de Lisboa, Bernardo Soares, seu heterônimo, encontramos passagens como: “Por que escrevo eu este livro? Porque o reconheço imperfeito. Sonhado seria a perfeição; escrito, imperfeiçoa-se. Doem-me a cabeça e o universo (...). Nestes momentos de terror silencioso, não sei o que sou materialmente. Sinto-me perdido de mim mesmo, fora do meu alcance. A ânsia moral de lutar, o esforço intelectual para sistematizar e compreender o que chamo de beleza”...

Tudo bem, poeta, a beleza encontramos na arte. Nesta vida você não conheceu Moa, o Moa do Katendê, o compositor, mestre de capoeira e criador do afoxé Badauê, assassinado com 12 facadas pelas costas por um fanático seguidor do candidato provedor de iniquidades. Amigo de Caetano e de Gil, Moa desenvolveu a capoeira de matriz africana desde os 8 anos. Foi um incentivador dos blocos afro de Salvador. Seu assassinato claramente simboliza o retorno à barbárie, em meio a uma onda de ódio e intolerância.

Como podes ver, é um momento de profundo desassossego. Mas tem outras coisas. Prepare-se porque vem aí a Mangueira, Estação Primeira, com o samba-enredo “Canção para ninar gente grande”, no carnaval de 2019. A história do Brasil será contada a partir de pessoas que se destacaram nas lutas pelas liberdades e direitos sociais, geralmente excluídas dos livros. “Eu quero o país que não está no retrato”, diz a letra. Pela memória de Marielle e por toda a luta que está por vir, já ensaiando uma resistência, um movimento de oposição. Vai ter reação, sim.

Saudações de seu fã, mangueirense e vascaíno.

* Jornalista e escritor