Villas-Bôas Corrêa: O seu a seu dono
O jornalista e escritor Elio Gaspari, autor da obra-prima dos quatro volumes sobre a ditadura militar - A ditadura envergonhada, A ditadura escancarada, A ditadura encurralada e A ditadura derrotada – é um doador de frases, que atribui a amigos e conhecidos, com generosidade perdulária.
Uma das mais famosas – “Pobre gosta de luxo, quem gosta de pobreza é intelectual” – foi atribuída ao Joãozinho Trinta. Meu filho Marcos, seu amigo de sempre e parceiro em várias duplas em jornais e revistas, testemunhou a faísca de talento na sentença irretocável, e a imediata escolha de Joãozinho Trinta para a autoria, jamais negada.
Na crônica literária são inúmeras as denúncias de plágio, confirmadas ou desmentidas. Será uma proeza digna de manchete, arrancar do Gaspari uma restrição aos espertos que se banham nas águas límpidas de seu talento.
E, no entanto, está sempre pronto a acolher a ponderação, um conselho, uma crítica de amigo. Quando meu filho Marcos despencou da escada em sua casa, bateu com a cabeça no chão e entrou em coma profundo, Gaspari foi dos primeiros a aparecer na Clínica São Vicente. Logo seguido pela romaria dos amigos. Sua mulher e minha querida amiga Dorritz já estava no Rio, onde também trabalha, na revista Piauí. Sentou-se ao meu lado e não arredou pé até a hora de pegar o avião de volta para São Paulo.
Senti cócegas na língua e não resisti à tentação de puxar o assunto. A série sobre a ditadura militar estava prevista para cinco volumes. E há muito tempo não se fala no livro encalhado. Gaspari reconheceu que devia aos seus leitores a promessa esquecida. Mas estava indeciso em voltar às pesquisas no monturo da ditadura. Meti o bedelho sem constrangimento: a série estava completa. Parou no governo do presidente Geisel. E que era o ponto final perfeito. O que pretendia pesquisar nos seis anos do presidente general João Figueiredo?
Com a simplicidade dos que não se consideram sábios da Grécia, Gaspari encerrou o assunto, rolando a pedra para tampar a sepultura: “Você tem razão. Não vou escrever mais uma linha sobre a ditadura”.
Meia hora depois, levantou-se e pegou o táxi para o aeroporto, levando o caixão com o livro que morreu antes de nascer.
Marcos e Gaspari são amigos de muitas décadas. Sem uma discussão, um desentendimento. Nas noites em claro do fechamento da revista Veja, em São Paulo, a dupla encerrava o turno com a média com pão e manteiga no botequim.
E cada qual para o seu lado. Uma ou duas vezes aceitou o convite de Jô Soares para a volta na carona da sua motocicleta. Jô apostava corrida com os aviões da rota Rio–São Paulo. E ganhava com o Marcos na garupa.
Mas o Elio Gaspari não é um excêntrico. Ele e Dorritz moram em dois apartamentos conjugados em São Paulo. Na verdade não moram, hospedam-se.
Gaspari passa a manhã e parte da tarde no apartamento em que dorme. À tardinha passa para o outro apartamento, onde a secretária o espera com volumoso papelório de jornais, revistas, cartas, telegramas, contas. Tudo devidamente catalogado, que o Gaspari tem os seus cacoetes burocráticos.
Enterrou o quinto livro em silêncio. No lançamento do terceiro volume, A ditadura derrotada, Marcos comparece abrindo os comentários da última página. Sem poupar elogios: “Surpresa: A ditadura derrotada, (...) terceiro livro da coleção e o primeiro de um tríptico intitulado O sacerdote e o feiticeiro, conseguiu melhorar o que era irretocável. Trata-se, mais uma vez, de cerca de 500 páginas de texto, encorpado por mais de 1.500 notas de pé de página e uma vasta bibliografia. Fechado, é um tijolaço. Aberto, é levíssimo”.
