Quem, afinal, escreveu o Corão?

Por

Mohammad Ayatollahi Tabaar , Jornal do Brasil

NOVA YORK - Por mais de duas décadas, Abdulkarim Soroush foi o intelectual mais famoso do Irã. Profundo conhecedor do islamismo e misticismo, foi escolhido por Ayatolá Khomeini para islamizar as universidades do Irã, para logo depois se voltar contra o Estado teocrático. Ele pagou o preço por sua dissidência. Vigilantes e outros oficiais apoiados pelo governo interromperam suas palestras lotadas no Irã, bateram nele e quase o mataram.

Num país onde os intelectuais geralmente são tratados como estrelas do rock, Soroush foi ao mesmo tempo venerado e odiado por apoiar abertamente o pluralismo religioso e a democracia. Agora, deu um passo fundamental. De universidade em universidade na Europa e nos EUA, Soroush vem causando comoção na elite clerical do Irã.

A recente controvérsia começou cerca de oito meses atrás, depois que Soroush falou com um repórter holandês sobre umas das questões mais delicadas do Islã: a origem divina do Corão. Muçulmanos acreditam há tempos que o livro sagrado foi transmitido, palavra por palavra, por Deus por meio do profeta Maomé.

Dupla função

Na entrevista, contudo, Soroush deixou clara sua crença alternativa de que o Corão era uma experiência profética. Ele disse que o profeta era ao mesmo tempo recebedor e produtor do Corão ou, se preferir, o sujeito e objeto da revelação.

Quando você lê o Corão, tem de sentir que um ser humano está falando com você, ou seja, as palavras, imagens, regras e a forma vêm de uma mente humana explica Soroush. É claro que essa mente é especial no sentido de que é imbuída de divindade e inspirada por Deus.

Quando as palavras de Soroush se espalharam graças à internet, os grandes ayatolás do Irã entraram na batalha. Os clérigos destacaram os versos do Corão que dizem, Este é um livro que enviamos para você (O Maomé). Eles perguntam:

Esses versos não deixam implícito que Deus é o revelador e Maomé o recebedor?

Houve épocas, de acordo com eles, em que Maomé esperou impacientemente que a revelação viesse a ele e que, em mais de 300 casos, o profeta recebe ordens para dizer a seu povo para fazer isso ou aquilo. Isso demonstra, segundo o argumento, que as ordens vêm de todos os lugares em vez do coração e da mente do profeta.

Soroush, por sua vez, responde dizendo que o profeta não era papagaio. Em vez disso, observa Soroush, se assemelhava a uma abelha que produz mel sozinha, mesmo que o mecanismo para fazer o mel tenha sido dado a ele por Deus. Esse é o exemplo que o próprio Alcorão dá , diz Soroush, citando o Corão: E o seu Senhor inspirou a abelha: Leve para você nas montanhas, casas ... depois coma de todas as frutas... lá emerge de suas barrigas uma bebida... em que há cura para as pessoas.

Soroush foi descrito como um Luther King muçulmano, mas, diferente do reformador protestante, não interpreta literalmente os livros sagrados. O trabalho dele lembra mais o de acadêmicos alemães do século 19 que tentaram compreender a Bíblia em seu contexto original. Quando um verso no Corão ou um dizer atribuído a Maomé fala em cortar a mão de um ladrão ou apedrejar alguém até a morte por adultério, ele apenas nos conta as normas da era do profeta. Os muçulmanos de hoje em dia não são obrigados a seguir essas medidas se tiverem meios mais humanos a sua disposição.

As últimas visões de Soroush não o levaram à poderosa ideologia conservadora do Irã. Alguns acusaram-no de heresia, que é punida com a morte. Houve protestos dos clérigos em Qom, capital religiosa do Irã, contra seu trabalho recente. Mas o líder supremo do Irã, Ayatolá Ali Khamenei, de forma inesperada, não quis alimentar controvérsia. Para ele, quem emprega filosofia ou pseudo-filosofia para perverter a mente da nação não deveria ser combatido com declaração de abandono da fé e ódio mas, em vez disso, enfrentado com verdades religiosas que vão deturpar seus argumentos.