Por que créditos de carbono estarão no centro da COP26

Cúpula climática de Glasgow começa nesse domingo

Por JORNAL DO BRASIL

Protesto em Londres contra mudanças climáticas às vésperas da COP26. Cartaz diz: 'chega de combustíveis fósseis'

Assinado em 2015, o Acordo de Paris é considerado um marco na luta contra a crise climática por estabelecer pela primeira vez uma meta global para limitar o aquecimento do planeta, mas também deixou algumas lacunas, como a regulamentação do mercado de créditos de carbono.

Esse será um dos principais temas na agenda da COP26, a cúpula climática que vai de 31 de outubro a 12 de novembro, em Glasgow, bem como o aumento das ambições de cada país para redução de emissões.

Ambientalistas esperavam que as partes chegassem a um acordo sobre os créditos de carbono na COP25, em Madri, mas a questão ficou para a conferência seguinte, em meio a um cenário de crescente urgência por conta das previsões que apontam que o mundo está caminhando na contramão da preservação da natureza.

Mas o que são créditos de carbono?

Na assinatura do Acordo de Paris, cada país se comprometeu com metas próprias para redução das emissões de gases do efeito estufa, como o dióxido de carbono (CO2), proveniente da queima de combustíveis fósseis, da indústria pesada e da devastação de florestas.

Essas metas são chamadas de "Contribuições Nacionalmente Determinadas" (NDCs, na sigla em inglês) e variam de acordo com a condição econômica e ambiental de cada nação. Se determinado país reduzir suas emissões além do objetivo estabelecido, ele poderia comercializar esse excedente para outro Estado que não tenha conseguido bater sua meta.

No entanto, para que esse mercado se torne algo consistente e estruturado, os países precisam definir na COP questões como a forma de contabilização dos créditos, os órgãos responsáveis por sua fiscalização e o preço desses ativos.

"A gente já fez contrato de crédito de carbono por R$ 2 e por R$ 20 no mesmo dia", diz Lina Pimentel, sócia do escritório de advocacia Mattos Filho, que tem uma área dedicada a direito ambiental e mudanças climáticas.

Atualmente, esse mercado funciona majoritariamente de forma voluntária, ou seja, com empresas negociando a compra e venda de créditos de carbono de acordo com as próprias metas de redução de emissões e com os próprios interesses corporativos.

"A gente espera que efetivamente se regule o mercado, ao menos com diretrizes bem específicas para se viabilizar a troca de emissões. Não sei se a gente vai conseguir regulamentar os ajustes para ter um grande e universal programa de carbono, mas acho que a gente vai criar o mecanismo para se dirigir a isso", diz Pimentel sobre sua expectativa para a COP26.

Laura Albuquerque, gerente de finanças sustentáveis da consultoria sobre mudanças climáticas WayCarbon, também está otimista e diz esperar um "encerramento com sucesso" nas discussões sobre o Artigo 6º, trecho do Acordo de Paris que trata sobre créditos de carbono.

"A gente sabe que dentro da COP tem muita coisa negociada previamente que pode mudar, então é sempre uma incerteza, não dá para garantir nada como jogo ganho, mas a gente espera que a COP possa dar o próximo passo em relação ao Artigo 6º", afirma.

Impasse na contabilização

Entre os entraves que impediram um acordo sobre esse tema na COP25, em 2019, estão as divergências a respeito da contabilização dos créditos de carbono comercializados entre os países.

Nações como o Brasil, por exemplo, queriam estabelecer um sistema de dupla contagem, ou seja, os créditos gerados pela redução das emissões seriam contabilizados tanto para quem cede quanto para quem compra, mas essa condição foi rejeitada pela União Europeia.

"Colocamos todos os argumentos na mesa, mas alguns países disseram não, como o Brasil, que impôs condições para os créditos de carbono", contou na época o então ministro do Meio Ambiente da Itália, Sergio Costa.

O próprio texto do Acordo de Paris diz que as partes devem "aplicar contabilidade robusta para assegurar que não haja dupla contagem", e especialistas envolvidos no setor também recomendam que o Brasil revise sua posição.

Em parceria com a ICC Brasil, a WayCarbon publicou recentemente um estudo apontando que o mercado de créditos de carbono pode gerar até US$ 100 bilhões em receitas para o país até 2030, no cenário mais otimista.

Nesse documento, a consultoria recomenda explicitamente que o Brasil aceite a "contabilização correta de crédito e débito de carbono". "Principalmente por motivo de alinhamento com os países que seriam compradores, a fim de manter uma demanda firme de créditos de carbono", diz Albuquerque.

Na mira da comunidade internacional por causa de suas políticas para o meio ambiente, o governo Bolsonaro não informou claramente qual será seu posicionamento sobre o tema na COP26.

"Para o Brasil, é muito importante a conclusão das negociações do livro de regras do Artigo 6º. Não temos dúvida da importância desse passo porque guarda coerência com o que o Brasil defendia lá atrás. Quando se criou, no Protocolo de Kyoto, os mecanismos de desenvolvimento limpo [MDLs], primeiro experimento do que viriam a ser os créditos de carbono, o Brasil foi importante na sua construção e pioneiro na implementação de projetos de algum relevo dentro desse mecanismo", diz o embaixador José Carlos da Fonseca, diretor-executivo da associação Indústria Brasileira de Árvores (Ibá) e membro da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura.

Fonseca aponta que o Brasil não foi o único fator de inviabilização de um acordo em 2019, mas admite que o país estava em uma fase de diálogo "menos fluído". "Saberemos a posição final do Brasil nos próximos dias, mas temos ouvido de autoridades brasileiras, do próprio ministro [do Meio Ambiente] Joaquim Leite, que há uma atitude de flexibilização potencial, que o objetivo maior é contribuir para que a negociação seja encerrada", acrescenta.

Governança

A estrutura de governança do mercado de créditos de carbono também é algo a ser definido no âmbito do Acordo de Paris. De acordo com Laura Albuquerque, da WayCarbon, de forma geral, cada país tem seu inventário de emissões, que é comunicado a cada dois anos para a ONU.

"Ao longo do tempo, os países vão reportando suas emissões, seus projetos de redução e, consequentemente, seus créditos de carbono", explica. Segundo ela, existe a expectativa de que a nova regulamentação aproveite a experiência do Protocolo de Kyoto, que tinha um secretariado dentro da ONU para monitorar as transações entre os países.

"Existe a expectativa de que uma governança semelhante seja replicada, para que a gente possa também ter transparência e confiabilidade em todas as transações, e não que isso seja autodeclarado de forma livre por cada país", afirma.

Fonseca também concorda que os MDLs do Protocolo de Kyoto trouxeram avanços metodológicos e institucionais que poderiam ser bem aproveitados nessa nova etapa, "para que a gente não comece do zero de novo, reinventando rodas que a gente já inventou a duras penas".

O que o Brasil deve fazer?

Além das questões a ser discutidas na COP26, o Brasil também precisa tomar algumas medidas para aproveitar plenamente as oportunidades proporcionadas pelos créditos de carbono.

Para Lina Pimentel, do escritório Mattos Filho, uma das principais é montar "políticas públicas que não engessem ou burocratizem modelos de negócios inovadores, mas que criem diretrizes e incentivos para as empresas colocarem a inovação como assunto primordial".

"Por mais que as empresas já estejam se acostumando a viver independentemente do governo, a gente sempre fica com uma fragilidade por não ter marcos regulatórios claros, porque cada negócio inovador precisa de aprovação do órgão regulador. E aí a gente trava porque é tudo novo, não tem uma política pública direcionadora", diz.

Segundo Pimentel, as empresas já conseguem fazer "bastante coisa", mas o grande impulso será dado "quando tivermos um órgão regulador".

Já a WayCarbon listou uma série de recomendações para que o Brasil possa atingir aquele cenário mais otimista de US$ 100 bilhões em receitas com créditos de carbono até 2030.

Embora essa estimativa use um preço ambicioso para o ativo (US$ 100 por tonelada, sendo que a média atual é de US$ 3 a US$ 5) e um cenário otimista de geração no Brasil (1 bilhão de toneladas de CO2 equivalentes), a consultoria ressalta que o primeiro passo é "acordar como país" para que o Artigo 6º seja implementado.

"Mas, além disso, a gente tem o dever de casa nacional, que inclui questões como cumprir a NDC brasileira o mais rapidamente possível para que a gente possa se antecipar e gerar esses créditos; estabelecer uma parceria entre governo e setor privado para ter um conjunto de atividades que formariam um resultado de mitigação; e medidas institucionais nacionais, como criar um sistema nacional de relato de emissões integradas e um monitoramento para projetos de carbono", diz Albuquerque.

Salvo-conduto?

Se o mercado de créditos de carbono é louvado por uns como uma oportunidade de aliar preservação ambiental com possibilidade de receitas, muitos ambientalistas questionam esse mecanismo e afirmam que ele pode servir como um salvo-conduto para empresas e países mais poluentes, porém com dinheiro disponível, não reduzirem suas emissões.

"O mais importante é reduzir diretamente as emissões de gases de efeito estufa, como as emissões vindas do desmatamento, principal fonte de emissão no Brasil", afirma Alexandre Prado, diretor de economia verde da ONG WWF no país.

A entidade reconhece que o comércio de carbono pode ser uma "prática relevante", mas alerta que seu uso para reivindicar a neutralidade nas emissões pode se configurar como "greenwashing" ("lavagem verde", em tradução livre), ou seja, dar uma falsa aparência de sustentabilidade a posturas nocivas para o meio ambiente.

"Os créditos de carbono podem acabar por desviar a atenção e os recursos do setor privado dos esforços de redução de suas próprias emissões", acrescenta Prado.

Pimentel concorda que esse risco seria real, mas não em um contexto de tamanha pressão pela preservação da natureza como o que o mundo vive agora. "Teria o risco, mas não acho que no contexto de hoje, a gente não tem mais a possibilidade de desconsiderar a emergência climática", explica.

Já para Albuquerque, "se a gente partir do princípio de que os países estão estabelecendo metas reais, factíveis e ambiciosas, esse mercado tem tudo para virar realidade". "Mas é uma premissa que as metas precisam ser ambiciosas para que o mecanismo seja eficiente. A preocupação pode ser sanada se a gente tiver metas ambiciosas", afirma. (com Lucas Rizzi/Agência Ansa)