Entrevista - Fernando de Holanda Filho: Os riscos da capitalização

Previdência defendida por Paulo Guedes tende a gerar rendimento aquém do esperado, alerta economista

Por Gabriel Vasconcelos

Fernando de Holanda Filho

De acordo com Fernando de Holanda Filho, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE/FGV) e doutor pela Universidade de Nova York, o sistema de capitalização, apontado como o preferido pela equipe econômica do governo Bolsonaro, é uma solução mais duradoura para a Previdência, mas traz riscos como a queda dos resultados das aplicações em função da baixa na taxa de juros — efeito direto de sua própria implementação. Por isso, é preciso medir suas consequências no médio e longo prazo, o que pesaria na escolha do percentual de contribuição e na observância das taxas de administração, movidas à competição bancária. Uma alternativa seria o formato multipilar, sugerido por Ciro Gomes ou Paulo Tafner. A ideia do economista, porém, é mais dura que aquela em tramitação no Congresso, e deve enfrentar resistência ainda maior. Por isso, Holanda defende a aprovação da reforma que já está lá.

O que pensa de uma Previdência com regime de capitalização, como quer Paulo Guedes?

A vantagem da capitalização é que evitará a necessidade de reformas adicionais conforme a população envelhecer. O atual sistema, de repartição, se apoia em um componente de solidariedade segundo o qual quem está no mercado de trabalho paga os proventos de quem está aposentado e as mudanças demográficas provocam constantes mudanças. A vantagem da mudança para a capitalização é que, como você passa a ter contas individuais os efeitos das mudanças na pirâmide demográfica são, de certa forma, neutralizadas porque cada um poupa para sua própria aposentadoria. O problema, porém, é a transição de um sistema para outro: como vamos fazer para a acumular a poupança de quem está hoje no mercado de trabalho se tal recurso é usado para pagar o benefício de quem está aposentado? Outro problema é o montante do recurso poupado sob o eventual novo regime. Se olharmos para o Chile, o país enfrenta dificuldades porque a contribuição estipulada era relativamente baixa. Além disso, o rendimento também cai ao longo do tempo, o que está ligado, em parte, ao sucesso do próprio programa, que reduziu a taxa de juros chilena. Isso fez com que os recursos aplicados passassem a render menos do que o previamente esperado. Se você tem um recurso para a sua velhice, aplicado para gerar seu fundo de capitalização e o juros que incide sobre ele baixa, o rendimento esperado diminui. A crise do sistema chileno se deve, portanto, a benefícios muito baixos anos depois da reforma. Em contrapartida, nos anos seguintes à reforma, a queda dos juros e o aumento da poupança trouxe crescimento da renda per capita chilena, o que é positivo. O que esse caso nos ensina é que o governo também precisa medir as consequências a médio e longo prazo.

Se o resultado prático pode ser diminuição da renda, não seria melhor repensar a repartição, mas mantê-la?

Se não for reformado, o atual sistema está condenado. Mas, nessa linha, entram as propostas mistas. A primeira foi feita pela equipe do Ciro Gomes, que era multipilar e próxima da ideia do (economista) Paulo Tafner, tão comentada nos últimos dias. Aí, você cria um primeiro nível de benefício assistencial para quem não contribui, depois uma segunda parcela que é de repartição e, finalmente, uma terceira de capitalização. Mas novamente o problema é a transição. Esse modelo multipilar tem a vantagem de olhar para o mais pobre. Ainda assim, no fundo, é só a institucionalização do que já temos. A parcela assistencial no Brasil de hoje é o Loas, no valor de um salário mínimo garantido. Depois tem a repartição, que é dominante e tem um teto de cinco salários. Mal ou bem, para as outras pessoas existe o sistema de previdência privada, de caráter complementar. Seja como for, será preciso fazer um ajuste porque do jeito que está não fica mais de pé.

Um sistema multipilar seria o ideal, então?

A proposta do Tafner me parece bem feita, mas reduz o benefício assistencial de um salário mínimo para 70% e também reduz o teto da repartição. Confesso que sou cético quanto à possibilidade de levar isso adiante. Porque é uma proposta mais dura do que a tramita com dificuldade no Congresso. Se não aprovam o que está lá, porque aprovariam algo ainda mais duro? Sendo realista, talvez não tenha viabilidade. Por isso, o que temos de fazer é aprovar o que tramita em Brasília para ontem e, depois, viabilizar outras mudanças. É preciso criar uma idade mínima aceitável, como 62 para as mulheres e 65 para homens, caminhando para igualar isso. Ainda não possuímos idade mínima, o que é impensável de olharmos para o resto do mundo.

A transição chilena foi feita mediante ajuste de 5% no PIB e aumento de impostos. O grupo de Bolsonaro a cita, mas nega o aumento de impostos...

É preciso dissociar um pouco o problema da economia e a Previdência, embora sejam assuntos que se comunicam. Existe um ajuste fiscal urgente para ser feito, entre 4% e 5% do PIB, que está no cerne da crise que vivemos. Houve uma eleição em que os dois grupos adversários diziam ser contra o teto de gastos, mas, ao mesmo tempo, prometiam o ajuste fiscal em dois anos. Se a PEC do teto for mantida, teríamos superávit fiscal depois de 2023. Os atores políticos prometeram o ajuste para antes disso. Então, as medidas desse ajuste têm de ser muito duras, o que passa por cortar muito gasto ou aumentar muito imposto, ou os dois ao mesmo tempo. Visto a Argentina, que buscou o ajuste gradual e deu no que deu, acredito que a maldade tem de ser feita de uma vez só. Ainda mais quando o presidente tem legitimidade. Mas, de fato, o grupo de Bolsonaro nega aumento de impostos e diz que usará a privatização de ativos como um começo para acelerar o ajuste. Mas acho que deveríamos aumentar impostos mesmo que temporariamente, porque é muito perigoso depender da boa vontade do ambiente externo para se financiar. Quando essa janela fecha, o ajuste é feito de forma imediata da pior forma possível, com uma recessão brutal. Sobre a Previdência, é o maior componente do gasto público. Então a reforma vai colaborar muito com o ajuste, não há dúvida. Por isso é preciso aprovar as mudanças possíveis para ontem. Caso o próximo governo comece e nada seja aprovado na Previdência, os próximos quatro anos serão muito difíceis.

Como vê a questão dos privilégios?

No caso dos regimes privilegiados, para servidores públicos, há uma PEC que foi aprovada e se aplica aos ingressantes, restringindo o problema ao estoque, ou seja, o pessoal que já está há muito tempo e vai continuar na antiga regra. Ainda assim, o sistema não é viável. A alíquota da contribuição desses grupos têm de ser majoradas no que for possível. E isso inclui militares. Sobre eles, na proposta do governo Temer, há medidas de contingência. O problema do militar não é a idade mínima, mas levar o soldo cheio para casa. Ninguém quer um soldado ou um guarda de 65 anos correndo atrás de ladrão na rua. Todos concordamos que há funções em que as pessoas não podem trabalhar até 65 anos, mas não é por isso que a pessoa deve se aposentar aos 49 levando o salário integral para casa. Se muita gente se aposenta cedo e custa muito para o erário, objetivamente há menos dinheiro para bancar que está na ativa. Precisamos de um sistema que fique em um meio termo. Basta olhar para o mundo. O soldado americano, quando se aposenta, não passa o resto da vida ganhando como se fosse um capitão da ativa. Bolsonaro representava determinados grupos, mas agora é presidente da República. Terá de lidar com o problema.

Qual o impacto do alto grau de informalidade na Previdência brasileira?

Em função componente solidário, muita gente recebe cerca de um salário mínimo contribuindo ou não. A questão da informalidade no sistema de repartição leva a um cenário em que uma pessoa que recebeu um salário mínimo a vida inteira e contribuiu, receba o mesmo benefício daquele que ganhou até mais de um salário mínimo e nunca contribuiu. Há quase um incentivo à informalidade. É o problema de quando você não separa os custos dos benefícios. Precisamos de um sistema que estimule a contribuição e, de fato, a capitalização ajudaria nisso. A Previdência não pode ser solução para a informalidade, mas a forma como os benefícios são calculados podem estimular o trabalhador ao vínculo formal.

Outro problema da reforma chilena são as altas taxas de administração dos fundos privados. Como controlar isso?

É preciso fomentar a competição. De certa forma, já convivemos com esse problema no Brasil, por exemplo no caso do FGTS. Esse recurso hoje vai direto para a Caixa que cobra uma determinada taxa de administração. Se houver mais competição e pudermos escolher quem vai gerir nosso dinheiro, a tendência é que todo mundo brigue por esse recurso e as taxas caiam naturalmente. Mais competição faria bem. E não só no setor bancário. O Brasil é um país que tem muita concentração em diversos setores. Se a concorrência não for estimulada no Brasil, naturalmente, os gestores vão explorar o contexto em um eventual sistema de capitalização.