Literatura: Eu sou o amor eterno e efêmero

Por Cecilia Costa*, cecil@gmail.com

Nos início dos anos 1990, já poeta, ficcionista e dramaturga consagrada, a escritora paulista Hilda de Almeida Prado Hilst, ou simplesmente Hilda Hilst (1930-2004), revelou em entrevista coletiva encontrar-se muito brava por não ser lida como achava que deveria.  Sua decisão, a partir desta constatação, foi escrever livros obscenos para chamar a atenção do público. Fato é que não lhe bastava a aceitação da crítica ou o carinho e a admiração da amiga de longa data Ligia Fagundes Telles ou do gaúcho bem mais jovem Caio Fernando Abreu, que, assim como o poeta Bruno Tolentino, frequentava a Casa do Sol. Assim era chamada a chácara próxima a Campinas onde Hilda produzia seus textos desde os 35 anos e recebia intelectuais, artistas e escritores, sendo que um deles, o escultor Dante Casarini, viria a ser seu marido.

Sim, a grande e premiada poeta estava furiosa, pois queria ser lida vorazmente. Mas seus livros tinham tiragens pequenas e ficavam nas prateleiras das livrarias. Era preciso apelar e ela, que já havia escrito em 1982 “A obscena Senhora D”, apelou, narrando em seu romance “O caderno rosa de Lori Lamby” a história de uma menina que fora alvo de pedofilia.  Outros livros com extrema sensualidade, tendendo à pornografia, se seguiriam, como “Contos d’escárnio- Textos grotescos”, “Cartas de um sedutor” e “Bufólicas”, mas foi “Lori Lamb” que deu mais alegria à autora no tocante às vendas, tendo criado curiosidade em relação à sua obra inteira, que era bem vasta, já que Hilda começara a escrever em 1950, quando estava com 20 anos, e não mais parara. Só de livros de poesia foram editados 22 títulos até 1999, cinco anos antes de sua morte. A ficção englobou 12 livros e as peças de teatro foram oito. Já tendo sido agraciada com prêmios como o do Pen Clube e da APCA, o grande problema até chegar a “Lori Lamb”, como disse Caio Fernando Abreu, é que para alguns a escrita de Hilst “é simplesmente ilegível, incompreensível com seu código pessoal personalíssimo e deliberadamente cifrado”.  Hilda escreve, disse ainda Abreu, “por amar a condição humana. Ninguém sairá ileso. Como não se saí afinal da própria vida”. 

Salva pela entrega ao outro

Amar, eis aí a principal arte de Hilda, escritora homenageada este ano pela 16ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Amar o outro, entregar-se sem medidas, sem ter medo da dor, do sofrimento. Amar em êxtase, como uma bacante de Dionísio, e desta forma integrar-se à natureza, flores e frutos, terra, céu, estrelas. Pelo amor ela é capaz de ser lida. Pelo amor não há leitor que a deixe. Talvez ela não soubesse disso na ocasião em que escreveu a tetralogia de livros obscenos. Mas este ano, por causa da Flip, ela o saberia. Durante muito tempo, os livros de Hilda desapareceram, não eram nem mais editados.  A Globo cuidou com carinho da obra mesmo impopular. Reeditou toda Hilda. E agora a Companhia das Letras veio completar o trabalho lhe oferecendo um milagroso presente. Para Hilda e para todos nós. Um pequeno livro magnificamente ilustrado por Ana Prata que se chama ”De amor tenho vivido”, com uma seleção de  50 poemas sobre o tema. E que seleção! Que poemas! O leitor de Hilda foi mesmo muito burro e impaciente ou apegou-se à prosa, antes da poesia. Já que a prosa é mesma dura de roer. Cifrada, como disse Caio Abreu. Hieroglífica. O que dificultava a caminhada em suas veredas de signos.

Já os poemas do amor, ah! Hilda sabia muito bem o que fazia aos escrevê-los. Dominava odes, trovas e cantares antigos. E sua sapiência não se detinha apenas nas formas clássicas, mas no conteúdo. Ela nos remete aos velhos poetas medievais franceses e portugueses, e ao mesmo tempo tem toda a modernidade contemporânea, sendo capaz de nos inundar de beleza a mais pura, a beleza dos amantes e seres apaixonados, os que têm gozos e êxtases, e também dores inomináveis. Ela não tinha medo de sofrer. Queria amar sempre e cantar o amor. Talvez seja por isso que os 50 poemas, extraídos de vários livros de poesia de sua autoria, desde o inaugural “Presságio”, sejam tão belos, a começar pelo próprio “De amor tenho vivido”, espécie de atestado de vida ou documento de identidade. “Quem sou? Sou aquela que de amor tenho vivido”. Ou como ela mesma diz, em sua “Balada do festival” número XIII:

“Amadíssimo, não fales. /A palavra dos homens desencanta.

Ante os teus olhos de prata,/ na noite espessa de teu rosto/ Antes o teu gesto de amor/espera de infinito e de murmúrio/água escorrendo de fonte, espuma de mar.

Depois descansarás em meu peito/ as tuas mãos de sol. O vento de amanhã/sepultará em meu ventre/cálido como areia/fecundo como o mar,/

A semente da vida.

Ouve: só o pranto/ grita agora em meus ouvidos”.

Todos os poemas são assim, lindos de morrer. Com uma dicção claríssima, sem enigmas semânticos ou metafóricos. Os únicos enigmas são os do amor, da vida, da natureza indomável, do sofrimento e da morte. Pois que quem ama também morre de amor. A maioria deles Hilda os escreve para um interlocutor que nos é desconhecido, o  homem que ela amou ou está amando, que às vezes metamorfoseia em Dionísio, o deus do prazer e do vinho. A mulher protagonista, a bacante, é rosa, tulipa, mar e criação, ou recriação, ressurreição, nascimento. Qualquer poema pode ser lido sem medo neste livro encantado, tão translúcidos que os textos são. Espelhos cristalinos de Hilda. Rosas sem espinho. 

Em “Trovas de um amor para um amado senhor”, ela escreve na Trova X:

“Amor tão puro/amor impuro/ nada parece/ Ser  mais escuro/que o definir-vos/Às vezes graça tão luminosa/às vezes pena tão perigosa...

E às vezes rosa/ tão matutina/que a mim não cabe/ (Eu, peregrina)/O descobrir-vos/ antes à tarde/ Cansar a pena/no definir-vos.

- Ai, quem padece/ De tanto amor/ E em alta chama/ A vida aquece?

-Ai, quem seria/ Sendo por vós,/ Só poderia/ ser eu, senhor.”

Amar e sentir em plenitude o mundo, o Outro, são atos inexoráveis, tanto que a poeta diz viver o transe do amor mesmo quando o objeto de amor está distante, mesmo quando não o vê. Talvez até o sentimento redobre, assim, ao participar do imaginário. Como ela conta ou canta em seu poema “Se não vos vejo”, a Trova XII de “Trovas de muito amor por um amado senhor”.

“Vos sinto por toda a parte,/Se me falta o que não vejo,/ Me sobra tanto desejo/que este, o dos olhos, não importa.

(Antes importa saber/ Se o que mais vale é sentir/E sentindo não vos ver.)

São coisas do amor, senhor/Desordenadas, antigas/e são coisas que se inventam/ P’ra se cantar a cantiga.

Não são os olhos que veem/ Nem o sentido  que sente/ O amor é que vai além/E em tudo vos faz presente”.

Aos amantes, tudo é permitido. Transcrevo aqui só o final de “Júbilo, memória, noviciado da paixão, número V”: 

“Ama-me/ Desvaneço e suplico/Aos amantes é lícito/ Vertigens e pedidos. E é tão grande a minha fome/ Tão intenso meu canto/ tão flamante meu pleclaro tecido/ que o mundo inteiro, amor, há de cantar comigo”.

Insisto: todos os poemas de amor de Hilda Hilst são perfeitos, com luas e sóis, sombra e luz, poentes, água, efemeridade, imortalidade, e pedra...sente-se uma rocha, perde a vida quando o amante se afasta, fica perdida. Mesmo os pequeninos versos nos fazem lembrar da perfeição de gemas ou pérolas, com imagens delicadas, a poesia vigorosa: 

“Que te demores, que me persigas/ como alguns perseguem as tulipas/Para prover o esquecimento de si./Que te demores/Cobrindo-me de sumos e de tintas/Na minha noite de fomes./ Reflete-me. Sou teu destino e poente/ Dorme”. O aprisionamento da beleza nas palavras é permanente mesmo nos poemas mínimos, tipo haikai “Fui pássaro e onça,/ Criança e mulher/Numa tarde de sombras/Fui teu passo.

Enfim, não vou ler “Lori Lamb”...Prefiro os versos apaixonados. São uma porta para o paraíso...e quem sabe para a prosa de Hilda, que obviamente mesmo com dificuldade deve valer a pena ser decifrada. 

A Companhia das Letras, neste ano de 2018, ajudou a poetisa nascida em Jaú a se cobrir de glória. E aproximou-a do leitor. Além desta seleção cuidadosa de poemas de amor, também foram publicados em função da Flip os livros “Da Poesia”, que traz a poesia reunida, “Da Prosa”, caixa com dois volumes, e “Júbilo, memória, noviciado da paixão”. Em júbilo, creio eu, está Hilda Hilst, que desta vez mesmo sem apelar para o sexo atrairá leitores, com certeza. O sexo é efêmero, o amor, mesmo que dure um só dia, é eterno, como já disse outro poeta. 

Amemos Hilda Hilst. 

 *Jornalista e escritora

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SERVIÇO

DE AMOR TENHO VIVIDO - Hilda Hilst 

Editora Companhia das Letras, 96 págs.

R$ 49,90