A força de “As meninas”, de Lygia Fagundes Telles, numa perspectiva histórica

Por CLAUDIA NINA* Especial para o JB

A pessoa de Lygia Fagundes Telles cruzou meu caminho três vezes. A primeira delas foi apenas a letra, em um autógrafo espontâneo, no romance “As meninas”, que ela me enviou logo após ler um texto sobre “A noite escura e mais eu”, livro de contos que resenhei em 1996: “Para Claudia Nina, agradecendo a bela crítica, esta lembrança afetuosa”. A tal resenha não foi publicada em um jornal propriamente dito, mas em um espaço inexpressivo, quase um folheto. Jamais imaginaria que a autora fosse tomar conhecimento daquele mínimo e, ainda por cima, me enviar um presente.  

A segunda vez foi a pessoa inteira: voz e corpo. Eu estava na Feira de Frankfurt de passagem. Ia aproveitar e fazer uma matéria para o Caderno Ideias (saudade) sobre os e-books. Precisava entrevistar autores e leitores. Meu primeiro personagem foi ela. Estava sentada em um banco, relaxada. Eu era seu oposto: cheguei com uma absurda falta de jeito, timidez e bloqueio. Na hora H, esqueci o nome dela. Tentei sobreviver ao desconforto. A conversa fluiu. A voz de Lygia orientou meu desassossego. 

A terceira vez foi novamente a pessoa inteira. Eu fazia parte da curadoria do Encontro de Interrogações do Itaú Cultural, e escolhemos a autora como homenageada. A mesa com ela foi o grande momento literário do evento. Lygia brilhou como sempre. 

Quando na semana passada, dia 19, ela fez 95 anos, me lembrei destas histórias e me deu vontade de rever o “presente” - “As meninas” (1973). Comecei a reler o romance, um texto fundamental. Até porque ali está um dos primeiros depoimentos sobre a tortura na ditadura militar no Brasil, o que não é, de forma alguma, apenas um detalhe na obra, mas uma citação que se une à engrenagem de toda a trama que tenta capturar o clima no país naqueles anos de assombro. 

Lygia reproduziu no livro um panfleto que havia recebido em sua casa. No romance, uma das “meninas” do título, a revolucionária Lia, chamada de Lião, faz a leitura de parte do testemunho de um torturado. Apenas um trecho de uma página crucial: “Pensei que fosse então morrer. Mas resistia e resisti também às surras que me abriram um talho fundo em meu cotovelo. Na ferida o sargento Simões e o cabo Passos enfiaram um fio. Obrigaram-me então a aplicar choques em mim mesmo e em meus amigos. Para que eu não gritasse enfiaram um sapato dentro da minha boca. Outras vezes, panos fétidos. Após algumas horas, a cerimônia atingiu seu ápice”. 

“As meninas”, segundo a própria autora definiu, é um testemunho do tempo e de uma sociedade. As personagens – Lorena, Ana Clara e Lia – viviam em um pensionato religioso, onde supostamente estariam protegidas do mundo e de seus perigos. Mas nenhuma redoma é capaz de isolá-las da vida pulsante que invade pelas frestas. Ana Clara se envolve com drogas até a morte; Lia torna-se cada vez mais combativa politicamente, e seu namorado, inclusive, é preso; Lorena se tortura com um amor impossível. Não há redomas à prova de vida. Nem mesmo a alienação é capaz de salvar a alma. A delicadeza do estilo de Lygia, atenta aos pormenores e à sabedoria dos detalhes, preocupada com os gestos e os mínimos ruídos da cena está ali em esplendor neste que é um dos trabalhos mais importantes de sua carreira. “O medo mora nas pupilas”, escreve. 

As agruras do Brasil do Terceiro Mundo estão retratas ainda nos conselhos à menina que sonha em ser jornalista: “Você não quer ser jornalista? Então é praticar, depois a gente vê. Presta atenção, falar em subdesenvolvimento não é só falar nas crianças, depois dou o número exato das que morrem por dia. Tem o analfabetismo. A multiplicação das favelas. Os retirantes, dê um passeio pelas rodoviárias, escute o que essa gente fala. Vendedores ambulantes com pentes, lápis, giletes. O lixo estourando nas ruas, como se chamam essas bocas que se abrem nas calçadas?” Nem as agruras nem o assombro. O que mudou realmente no país? “As meninas”, como documento e como literatura, tudo junto em uma grande obra, lido em tempos diferentes, algumas décadas depois, faz pensar que talvez minha primeira visita ao texto não tenha dado conta da força do romance em sua perspectiva histórica. A forma como a autora faz crescer a intensidade das situações e dos dramas internos de cada personagem, a falsa tranquilidade dos cenários cotidianos, que parecem transcorrer como se uma cortina de normalidade pretensamente escondesse o que estava acontecendo de pior, são pontos alto, entre tantos, que não tenho certeza de ter observado antes. É preciso, como sempre diz a autora, tornar-se um cúmplice.

 O escritor brasileiro, costuma fazer, tem que fazer suas denúncias contando com “o leitor que, mais do que parceiro, é um cúmplice”.  Quem sabe aquele presente lá de 1996 não foi um pedido para que eu fosse, não só uma fazedora de resenhas, mas uma cúmplice de sua escrita? 

* Claudia Nina é jornalista e escritora (cnina@gmail.com)