Palavra de ordem: delicadeza

Felipe Hirsch assume o desafio de dirigir um filme sobre livros e traumas latinos em ‘Severina”

Por RODRIGO FONSECA*Especial para o JB

Depois de quase nove meses rodando o mundo, a partir de uma calorosa projeção no Festival de Locarno, na Suíça, “Severina” chega, enfim, às telas do Brasil, com o ator argentino Javier Drolas (de “Medianeras”) em sua linha de frente, para revelar ao espectador nacional os atributos cinematográficos de Felipe Hirsch.

Um dos mais aclamados encenadores de nosso teatro, entra agora, como diretor, nos palcos do audiovisual, numa aventura solo. Há nove anos, ele e Daniela Thomas dirigiram, a quatro mãos, um filme-experimento sobre a nossa ressaca utópica: “Insolação”, exibido no Festival de Veneza de 2009. Mas, agora, dirige sozinho uma história de amor quase clássica com a América Latina em foco, que, na Suíça, arrebatou críticas apaixonadas como a da “Variety”: “Hirsch faz uma sincera homenagem a Jorge Luis Borges, à fantasia e às mulheres”, escreveu o repórter John Hopewell, abrindo um coro de resenhas carinhosas dos EUA e da Europa ao longa-metragem, que estreia aqui nesta quinta-feira.

“Confesso estar um pouco surpreso com a atenção que estão dando ao ‘Severina’ lá fora e até aqui, com palavras tão lindas, como se a gente, dentro do tamanho que este filme tem, precisasse dele”, diz Hirsch, que trouxe ainda para o elenco atores latinos de peso, como Alfredo Castro e Daniel Hendler.

Com foco na rotina de um livreiro aspirante a escritor, abalado por uma enigmática mulher que rouba em sua loja, o roteiro de “Severina” é baseado na prosa do escritor guatemalteco Rodrigo Rey Rosa (autor de “Os surdos”). Estrelado por Drolas e pela também argentina Carla Quevedo, o longa começou a ser produzido – por Rodrigo Teixeira, de “Frances Há” (2012), de “A Bruxa” (2015) e do oscarizado “Me chame pelo seu nome” - durante a criação de “Puzzle”, projeto teatral realizado especialmente para a Feira de Livro de Frankfurt (Alemanha), em 2013.

Metáfora sobre o poder redentor do perdão, “Severina” faz a cartografia de um amor obsessivo que se desenha entre papéis e narrativas. No enredo, R. (Drolas, com quem Hirsch filmou a série “A menina sem qualidades”, para a MTV), é dono de uma livraria onde uma moça de comportamento incomum, Ana (Carla), atrai a sua atenção, e não só pelo hábito de surripiar romances para ler e compartilhar com um suposto avô. Os hábitos dela revelam algo sobre nossa realidade continental.

Na entrevista a seguir ao JB, Hirsch dimensiona o universo humano de love story literária que filmou. 

Jornal do Brasil: Cabe um universo inteiro nas prateleiras da livraria de R., seu protagonista, assim como cabem mundos diversos na narrativa de amor que você construiu em torno dele. Qual foi o seu norte?

Felipe Hirsch: Queria falar tanta coisa com esse filme, mas de maneira despretensiosa. É possível você falar coisas importantes de uma maneira delicada. Não queria um filme reativo ao nosso zeitgeist (espírito do tempo), e, sim, fazer algo que durasse mais tempo para quem assiste. A relação com Rodrigo Rey Rosas, um escritor muito querido por seus pares latino-americanos, misterioso, foi muito generosa. Nesses oito anos que fiquei sem fazer um longa, pensei muito nas histórias que eu queria contar e resolvia elas na minha cabeça, de uma maneira ou de outra. “Severina” sempre foi um mistério para mim, por ser uma história de amor aparentemente simples, mas que contém muitos outros assuntos, inclusive políticos. Aquilo foi me fascinando, uma vez que não sabia o porquê daquilo na minha vida. Quanto menos tinha respostas, mais eu me fascinava por fazê-lo. Escolhi fazer um filme que eu não soubesse onde ia dar.

JB: Que fronteiras de linguagem o cinema ultrapassa na tua relação com a literatura?

Hirsch: Os dois filmes que eu fiz são muito ocasionais na minha vida, relacionados a momentos que eu estava vivendo. “Severina” é um braço sobre um projeto grande que venho desenvolvendo sobre a literatura latino-americana, com o Brasil dentro dela, que resultou em sete peças de teatro, numa minissérie ainda inédita que foi escrita por 20 autores latino-americanos, num curta ainda inédito. Nunca fiz um filme deslocado do que eu estava vivendo: eles respondem como forma, como linguagem, a escolhas da minha vida.

JB: Qual é a dimensão da palavra no seu cinema?

Hirsch: É a confiança de que nós temos, neste continente, autores para satisfazer nossos desejos literários. Tenho olhado para eles nos últimos cinco anos e gostaria de ver mais gente olhando, pois é muito importante mostrarmos pro mundo que escritores incríveis como Alejandro Zembra, Leonardo Padura Fuentes, Juan Villoro estão aqui, escrevendo do nosso lado. Tenho muita confiança na palavra que é emitida no filme. Ela não é simplesmente ocasional.

É nela que eu quebro o código realista do cinema. Na imagem, gosto de uma câmera sem truques, sem virtuosismo. Mas também acredito que a palavra possa ser assim: distinta do naturalismo rasteiro, para ser colocada em outro patamar poético. 

JB: Qual é o lugar do silêncio na sua arte e neste universo de livros?

Hirsch: O silêncio e a solidão têm um peso enorme para um livreiro, sobretudo nestas livrarias de rua já tão raras em nosso país. Em Curitiba e Porto Alegre, ainda temos algumas, mas, na Argentina, eles têm umas 400. No Uruguai, também. Mas a imagem dessas livrarias é de uma América Latina de práticas artesanais que vai se despedindo da gente, dando lugar a memórias digitais. A solidão de R., naquele vazio, e uma aparente falta de sentido naquela profissão, vêm de conclusões de um pensador de um bairro já meio vazio, a Ciudad Vieja, no Uruguai, que, no ?lme, vira um lugar qualquer da América Latina.

JB: Desde a primeira exibição de “Severina”, no Festival de Locarno, elogia-se muito a luz do filme, construída na simbiose estética entre você e o fotógrafo português Rui Poças, hoje um dos mais disputados do mundo. Como é a estética de Poças?

Hirsch: Rui é um fotógrafo muito técnico que aceitou minhas loucuras por ter muita segurança. Estávamos fotografando num lugar cheio de vidro, fazendo cenas improvisadas com planos longos em sequência, sem storyboard, com uma câmera da qual eu exigia fluidez para todos os lados. Trabalhamos numa paleta de cores entre o azul, do princípio da noite, e o dourado, da madeira. Mas era uma paleta que não poderia ser forçada: o princípio era a delicadeza. Era importante saber fotografar prateleiras de livros, sem que isso se tornasse monótono, com sedução e com a curiosidade que esses objetos despertam.

JB: Qual foi o cinema brasileiro que te formou?

Hirsch: O cinema da década de 1960, do qual hoje temos extremo orgulho, pautado pela liberdade de filmar suas ideias. A turma do Cinema Novo, com Leon Hirszman, Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, teve que derrubar muitos muros, e nada deles é tedioso como o cinema mais comercial tende a ser. 

* Rodrigo Fonseca é roteirista e presidente da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ)