Crítica de teatro: ‘Pai’  

Por Ana Lúcia Vieira de Andrade  

Nos últimos dez anos, a dramaturgia produzida por novos autores vem se destacando no panorama teatral brasileiro por sua diversidade e abundância. Podemos afirmar, sem risco de cometer injustiças, que em poucos períodos da história de nosso teatro, vimos tantos jovens dramaturgos colherem elogios e serem levados aos palcos de modo tão frequente quanto nesse início do século XXI.

A que devemos atribuir tal êxito? Com certeza, a uma força de vontade inquebrantável, que envolve, obviamente, grande amor pela expressão cênica. No entanto, não poderíamos esquecer, também, que um dos fatores mais determinantes para esse sucesso tem sido a opção por um tipo de escritura que não se prende a estilos e padrões rígidos, que se arrisca por temas e formatos diversificados, sempre com base no diálogo ágil e de qualidade.

Em Pai, de Cristina Mutarelli, autora que já vinha de uma carreira como atriz, artista plástica, figurinista e diretora de arte, por exemplo, nos deparamos com um monólogo bastante corajoso, desenvolvido a partir do reencontro de Alzira com seu pai, velho e solitário, a quem ela visita com o objetivo de pôr em pratos limpos todo um passado de abusos, que precisa ser superado. “Por delicadeza, eu perdi a minha vida”, ela diz, citando verso de Rimbaud, enquanto rememora a violência e a falta de amor que marcaram as relações entre pai, filhas e esposa. A peça encena o momento preciso em que o jogo de forças é, finalmente, invertido, e Alzira começa a libertar-se das amarras do papel de vítima, ao mesmo tempo imposto e aceito no passado, para tornar-se algoz, passando de animal presa a animal predador.

Com o intuito de vingar-se, a personagem, tal qual um anjo exterminador, pretende instaurar a morte de um tipo de comportamento perverso, baseado na repetição, para alcançar o espaço de liberdade, representado pelo mundo exterior (que se opõe ao universo da casa) e pelo tempo histórico, do qual ela e sua família, durante vários anos, participaram apenas superficialmente, pois fecharam-se às mudanças, preferindo ceder à brutalidade paterna, negando a si mesmas a possibilidade de libertação do ciclo sadomasoquista. 

Deparamo-nos, assim, com personagens que permaneceram num universo quase originário, extremamente cruel, onde todas as relações eram baseadas na lógica do utilitarismo e da exploração. Esse quadro, que se apresenta marcado por uma dose de humor negro, é descrito por Mutarelli com precisão e crueza, sem que se façam concessões fáceis a posturas mais conciliadoras.

Rita Elmôr, no papel de Alzira, a filha que acerta as contas, utiliza o texto como um instrumento no qual é mestra, aproveitando ao máximo as grandes possibilidades que ele lhe traz, principalmente ao investigar as lacunas, os hiatos, o não dito e o não vivido junto ao pai. A montagem, dirigida por Bruce Gomlevsky, apesar de sua aparente simplicidade, explora com requinte as nuances da personalidade de Alzira e de sua neurótica necessidade de aprovação, propondo um uso inteligente do cenário, ao mesmo tempo funcional e simbólico, de Nello Marrese e Natália Lana.     

A trilha sonora de Marcelo Alonso Neves, composta especialmente para o espetáculo, também contribui para o êxito do todo.

Pai comprova mais uma vez que a dramaturgia produzida no Brasil hoje alcançou um determinado patamar de maturidade que, em muito, pode nos orgulhar no futuro.  É, em todos os sentidos, bom teatro e, por isso, merece ser visto e apreciado. 

Cotação: ** (Bom).