Biografia de James Brown revela como o Rei do Soul evitou uma tragédia

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Ricardo Gonzalez, Jornal do Brasil

RIO - Dá para imaginar um final feliz quando se tem um paiol em chamas e, em vez de água, você atira um barril de pólvora para conter o fogo? Pois é dessa improbabilidade, entre outras, que trata o belo trabalho jornalístico do crítico James Sullivan O dia em que James Brown salvou a pátria. O fogo, no caso, eram as 3 mil tensas pessoas que foram ao Boston Garden na noite de 5 de abril de 1968 um dia depois do assassinato do pastor e líder negro Martin Luther King dispostas a encarar a polícia. E a pólvora era o poderoso chefão do soul , o furacão James Brown, convocado pelo prefeito branco até no nome, Kevin White, para acalmar a turba.

Tinha tudo para dar errado, até porque, para a garotada que não teve o privilégio de ver um show do rei do soul, acalmar era um verbo absolutamente improvável nas suas apresentações. James Brown era definido por alguns como uma força da natureza em cena, e pelo The New York Times como um motim de um homem só .

Era esse sujeito quem estava encarregado de evitar que Boston se transformasse numa enorme praça de guerra mede-se o tamanho da façanha quando se sabe que o total do caos nos Estados Unidos, com a revolta negra pela violência covarde contra Luther King, foi de 39 mortos, cerca de 3 mil feridos e um número incalculável de presos.

E o pior (ops, na verdade, o melhor) é que Brown conseguiu. O show foram duas horas e 14 minutos em que rolou um clima tenso, mas pacífico, e no fim até foi permitido que alguns fãs subissem ao palco. Somos negros, não nos façam parecer maus , repetia Brown, com firmeza, conseguindo controlar os mais exaltados.

Essa firmeza nas palavras de James Brown não eram falsas ou mera estratégia de controle do público. O sujeito acreditava com toda fé no que estava dizendo e fazendo. A questão era: se estivesse no comando um artista preocupado apenas com o movimento negro, com a marcação de posição que, de resto, era importantíssima naqueles tempos a coisa ia descambar.

Só que James Brown defendia com unhas e dentes seus irmãos de cor. Mas não era só com eles que o Furacão se preocupava e isso lhe trouxe má fama e críticas injustas. Ele era, além de negro, americano. Patriota, no que de melhor há neste termo. Ufanista, a ponto de não temer ser chamado de adesista ao gravar a música America is my home. Assim, não queria agitação em seu país. Bagunça, no máximo, no palco.

O tamanho do feito de James Brown, que desligou a panela de pressão naquela noite em Boston, pode ser medido também pelo fato de ter ido parar no editorial do sisudo Wall Street Journal (veja no trecho abaixo). E foi amplificado porque ele não conseguiu controlar apenas os 3 mil fãs que estavam no ginásio. Por iniciativa do staff da prefeitura, o show foi transmitido ao vivo para a cidade de Boston com direito a videoteipe depois que o cantor deixou o palco. É saborosa e divertida a descrição das peripécias tecnológicas para que a transmissão funcionasse a emissora local havia acabado de adquirir sua primeira unidade móvel, e as câmeras coloridas não podiam ser plugadas nas instalações do ginásio (o show foi ao ar em preto e branco, com os velhos plugs que ficavam no Garden para os jogos do Boston Celtics na NBA).

A obra de Sullivan, contudo, é bem mais do que descrever aquela noite dramática e inesquecível, como o título do livro e o início desta resenha podem sugerir. É uma bem detalhada biografia de James Brown, desde seu nascimento na Carolina do Sul, em 1933, até sua morte, no dia de Natal de 2006.

É um belo documento para quem só conhece o rei do soul, e não sabe detalhes do neto de índios, descendente também de orientais e egípcios, o que tornava sua raça não apenas negra mas, principalmente, humana Gylan Kain, um dos poetas mais conceituados nos Estados Unidos também o definia como um pajé .

As dificuldades da infância, que lhe deram pouco estudo e muitas passagens pela prisão, transformaram James Brown, quando seu ego permitia, num paladino da educação para a população negra. Estudem. Sejam alguém. Este é o verdadeiro poder negro , repetia Brown a seu público. Não aterrorize, organize. Não incendeie, aprenda , concluía.

A menção ao ego é inevitável e o tema provoca alguns dos momentos mais engraçados da obra, quando cita algumas declarações do cantor sobre si mesmo. James Brown é um conceito. James Brown é uma liberdade que criei para a humanidade . Mesmo ao referir-se a Martin Luther King, que involuntária e tristemente daria a James Brown uma chance única de brilhar, o Furacão não faz por menos. Ele não era um homem das ruas. Eu era .

A parte decadente da carreira de James Brown é menos explorada no livro. Ainda assim, é bastante lógico que um homem com as crenças ferrenhas em si próprio como Brown teria dificuldades em aceitar e conviver com algumas regras da vida.

Exemplo: ele perdeu muito dinheiro em multas para o governo, já que se recusava a pagar impostos. E não era por desonestidade. Ele explicava, com a maior das convicções, que impostos só deveriam ser pagos por quem desfrutou das ações do governo. Eu nunca usufruí disso. Tudo o que conquistei foi com muito suor e trabalho. Então não devo pagar impostos .

Quem pegou o bonde andando nas últimas estações não deve ficar com a imagem do James Brown que, em 1988, surtou, agrediu um policial, furou bloqueios com seu furgão e, entre uma condenação e outra, acabou ficando dois anos e dois meses preso. Pode acreditar, quem estava ali, detrás daquelas grades, era uma verdadeira majestade da black music, influência clássica no funk e hip hop moderninhos.

Música, ainda mais o tipo da que James Brown produzia dançante, vigorosa, visceral não cabe nos limites das palavras. É som para ser ouvido. Ao fazer isso, qualquer um conclui que James Brown era o cara . Não acredita? Nunca viu? Então é o seguinte: Michael Jackson você conhece, certo? James Brown foi somente a maior fonte de inspiração para Michael nos palcos.

Trecho

James Brown, o notável artista do rock and roll, costuma produzir qualquer coisa, menos tranquilidade , foi o que o editorial do Wall Street Journal intitulado Rock não violento observou poucos dias após o show. Multidões em delírio vão ao frenesi quando ele começa a remexer seus quadris num selvagem boogaloo ou outras danças populares, e eles respondem ruidosamente às suas canções gritadas . Brown , continuava o artigo, pode parecer um apóstolo improvável da mensagem de não violência de Martin Luther King. Mas dificilmente seria possível encontrar alguém mais eficaz na noite da última sexta-feira . Brown, sempre inatingível, declararia que jamais se sentiu muito pressionado sob os holofotes em Boston. As pessoas ainda me perguntam se eu tive medo naquela noite. Claro que a resposta é não , afirmou em suas memórias, publicadas em 2005. Anos mais tarde, um consultor de planejamento de Cambridge, que havia ido ao show com a esposa, se encontrou com Kevin White numa recepção. Quando o homem relembrou como estava apreensivo, o prefeito replicou: Nem de perto você estava tão apavorado quanto eu .