Uma traição necessária

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Taynée Mendes, Jornal do Brasil

RIO - O autor adverte: Este livro é escrito em cubano . A afirmação pode assustar muitos tradutores diante de um romance tão complexo como Três tristes tigres, de Guillermo Cabrera Infante. A narrativa, cheia de armadilhas de linguagem, parece confirmar a tese de que traduzir é trair.

Depois de mais de duas décadas fora de catálogo no Brasil, o livro mais conhecido do escritor cubano ganha nova tradução assinada pelo jornalista Luís Carlos Cabral, que relata o desafio nesta entrevista.

Como foi traduzir um dos mais ousados, do ponto de vista da invenção, livros já escritos , segundo suas próprias palavras na 'Nota do Tradutor'?

Já traduzi mais de 50 livros e este foi, sem dúvida, o mais difícil. É que se trata de um livro cheio de brincadeiras de linguagem, palíndromos, aliterações. Há personagens que falam errado e o autor reproduz sua maneira de falar. Quem falava errado em espanhol na versão original passou a falar errado em português na tradução. Fui obrigado a fazer adaptações. Mas estas foram apenas algumas das dificuldades.

Qual a maior dificuldade?

Foram tantas que é quase impossível nomear uma delas. Um exemplo: havia mais de 160 termos de arquitetura e decoração, a maioria dos quais não assinalados nos dicionários gerais. Mas acabamos resolvendo e chegando a palavras como tríglifos, métopas, sofito e por aí vai. Na verdade, trata-se de uma brincadeira do Cabrera Infante com o grande escritor cubano Alejo Carpentier, o rei das descrições minuciosas.

Quanto tempo levou para concluir a tradução?

Precisei de cerca de seis meses para fazer a primeira versão, aquela que encaminhei à editora. E depois, na reta final, cerca de dois meses para fechar o texto que foi publicado. Na última leitura, ainda fiz mais de 80 observações. E estaria mentindo se dissesse que não há mais nada a corrigir. O autor repete, com razão, a velha frase de que traduzir é trair. Mas é uma traição necessária, pois se não existissem os tradutores o conhecimento não circularia. A literatura ficaria restrita àqueles que têm a língua em que os livros foram escritos como língua mãe. Ou seja, os brasileiros não conheceriam Cervantes, os franceses não conheceriam Joyce, os alemães não conheceriam Guimarães Rosa e assim por diante.

Pode citar trechos, expressões ou palavras que mais lhe deram trabalho e que solução foi encontrada em português do Brasil?

Quase todos os palíndromos, aquelas palavras ou frases inteiras que podem ser lidas indiferentemente da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita, tiveram de ser adaptados para permanecerem palíndromos também em português. Como em dábale arroz a la zorra el abad (na tradução literal o abade dava sopa à raposa ) que transformei em morram após a sopa marrom . Mas, às vezes, quando a tradução era óbvia, deixei no original mesmo. Foi o caso de Anilina y oro son no Soroya ni Lina. E os trava-línguas. Como em cacarajícara hay uma jícara que el que la desencacarijicare buen desencacarijador de jícara em Cacarijícara será que virou em Cacaraxícara há uma xícara e aquele que a desencacaraxicar bom desencacaraxicador de xícaras em Cacaraxícara será . Outro exemplo: há uma Cantata do Café, uma cantiga infantil com cinco estrofes, cada uma correspondente a uma vogal e por essa dominada. Uma delas, a da vogal e , diz em espanhol: Ye te deré/Ye te deré neñe hermese/Te deré ene kese/Ene kese ke ye sele se/KEFE. Ela ficou assim em português: Ee te deré/Te deré menene benete/Te deré eme keise/Eme kese ke se ee se. Na verdade, traduzindo para o adultês seria: Eu te darei/Te darei menino bonito/Te darei uma coisa/Uma coisa que é/CAFÉ . Ou as palavras lidas através do espelho. No original era assim: Mano/onam; Azar/raza; Aluda/adula; Otro/orto; Risa/asir. E ficou assim: Rara/arar; Sala/alas; Roma/amor; Acata/ataca; Marrom/morram; Arado/odara; Raiva/aviar. Ou encontrar o significado de Guan-Habana, que traduzi para Guan-Havana : assim foi apelidada a parte da cidade frequentada pelos americanos que a chamavam de Havana One. Guan é uma brincadeira com a palavra inglesa one, ouvida e reproduzida como guan pelos cubanos. Esta fez parte do trabalho braçal que é traduzir: pesquisar infinitamente para chegar ao significado exato das palavras.

Cabrera Infante afirma, na 'Advertência', que o livro é escrito em cubano . O que significa?

É o espanhol falado pelos cubanos, mas muitos personagens falam em havanês, numa gíria particular dos personagens da noite de Havana. Mas esta não foi a principal dificuldade, pois tanto o cubano como o havanês têm muita semelhança com o espanhol. E, quanto à gíria, sempre que tive dificuldade, sempre que não foi possível recorrer aos dicionários com os quais trabalho, pedi a ajuda de amigos latino-americanos ou espanhóis. Traduzir não é nunca um trabalho individual, solitário. Nós, tradutores, costumamos incomodar muita gente, muitos especialistas na matéria objeto dos livros que traduzimos, para incomodar o menos possível os leitores.