No covil de Sandokan
Alvaro Costa e Silva, Jornal do Brasil
RIO - Por que ler Emilio Salgari hoje? Ou melhor, será que a obra deste italiano nascido na época da unificação do seu país (Verona, 1862), autor de mais de 200 novelas, lido como nunca em seu tempo, ainda guarda o mesmo atrativo?
Sim e não. Será difícil e dizer isto é um tanto triste que um garoto de hoje, que não quer mais usar calças curtas, desfrute a emoção que desfrutaram os moleques de antigamente com as aventuras de piratas dos Mares da China.
Mas é bem possível que leitores de qualquer idade ainda curtam ler Salgari (pronuncia-se Salgári, e não Sálgari). Não mais buscando emoção, e sim pura diversão. Ou curtição anacrônica.
O que você vai encontrar nos livros dele é a seguinte atmosfera: Na noite de 20 dezembro de 1849, uma violentíssima tempestade desabava sobre Mompracem, ilha selvagem e sinistra, covil de piratas aterrorizantes, situada no Mar da Malásia, a algumas centenas de milhas da costa ocidental de Bornéu. No céu, graças à força de um vento poderoso, corriam como cavalos galopando à solta e misturando-se confusamente negras massas de vapor que, de vez em quando, deixavam cair aguaceiros terríveis sobre as densas florestas da ilha; no mar, também agitado pelo vento, enormes ondas colidiam desordenadamente e irrompiam com fúria, misturando seu rugido com as crepitações, ora breve e secas, ora intermináveis, dos raios. (...) Quem permanecia de sentinela àquela hora e com tamanho temporal, na ilha dos piratas sanguinários? .
Resistir, quem há-de? São as primeiras páginas de Os tigres de Mompracem. Salgari a seguir fez uma sequência, Os piratas da Malásia (ambos foram editados recentemente pela Iluminuras). Neles, narra as peripécias do sanguinário pirata Sandokan, seu fiel amigo e companheiro, o português Yanez, e sua amada Marianna, a Pérola de Labuan, personagens que inspiraram filmes e histórias em quadrinhos.
Outra questão que intriga em relação ao autor italiano é a grande quantidade de escritores, cineastas e personalidades que, na infância e juventude, não conseguiam desgrudar a vista de seus livros. A lista de adictos é grande e, como naquela velha propaganda de sabonete, sempre cabe mais um: Federico Fellini, Sergio Leone, Gabriel García Márquez, Isabel Allende, Carlos Fuentes, Jorge Luis Borges, Pablo Neruda, Che Guevara, Javier Marías. Devoto incondicional, Umberto Eco cita Salgari diversas vezes no romance autobiográfico A misteriosa chama da rainha Loana.
Suas obras também agradavam a família real da Itália e, em 1897, o rei Humberto o consagrou Cavaleiro da Coroa. Apesar do título e de seus livros venderem como macarrão como lembrou o poeta Paulo Mendes Campos num artigo teve uma vida infeliz. Sua sina foi escrever, escrever e escrever (usando a tinta rala que ele mesmo extraía de certas frutinhas) para fugir da miséria. Nunca soube o que era diversão ele que a tantos divertiu! como desabafou na carta de despedida. Cometeu suicídio antes dos 50 anos, deixando para a família (mulher e quatro filhos) a soma miserável de 150 liras.
Paulo Mendes Campos leitor apaixonado da fantasia futurista As maravilhas do ano 2000 intuiu que Emilio Salgari era dado a fabulações de mitômano, pois apreciava ser chamado de capitão e divulgava aventuras que lhe teriam acontecido em mares amarelos. Na verdade, nunca teria ido além de Brindisi, no Adriático, colhia material em bibliotecas, e era pagando bebida para marinheiros que ouvia coisas e loisas do Oriente. Sem dúvida, um método que se provou eficaz.
Mas a melhor definição do fascínio que provoca sua obra quem deu foi o próprio Salgari: Escrever é viajar sem o aborrecimento das bagagens .
