Biógrafo de padre Cícero teve acesso a documentos secretos do Vaticano

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Angelo Cuissi, Jornal do Brasil

RIO - Líderes políticos adquirem popularidade por seu carisma, sua capacidade de comunicação e articulação e, às vezes, por estarem no lugar e hora certos. Quase todos os critérios foram preenchidos por Cícero Romão Batista, o padre Cícero dos romeiros e fiéis.

A biografia Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão, escrita pelo jornalista Lira Neto uma estudada narrativa em mais de 500 páginas só se tornou possível graças a dois anos de pesquisa, incluindo a consulta a mais de 900 cartas e telegramas, arquivos da Cúria do Crato e documentos secretos do Vaticano e do Santo Ofício. Lira Neto também biógrafo da cantora Maysa, do escritor José de Alencar e do general-presidente Castello Branco soube utilizar o material inédito para sintetizar, em texto fluente e bem cuidado, as múltiplas dimensões do beato sertanejo: padre rebelde e devoto caboclo, político astuto e líder gentil, persuasivo e influenciável; missionário, romeiro e santo.

O livro vem a público em meio ao processo de reabilitação do personagem pela Igreja Católica, e não é indiferente a isso. Dividido em duas partes A cruz e A espada contextualiza no prólogo e epílogo a história recente do religioso, tido por dom Fernando Panico, atual bispo do Crato, como um antivírus contra o avanço das seitas evangélicas . Para o papa Bento XVI, que ordenou a revisão do processo do Santo Ofício (atual Congregação para a Doutrina da Fé, comandada até 2005 pelo então cardeal Joseph Ratzinger) contra padre Cícero, o estímulo às romarias é parte importante da estratégia da Igreja no Brasil.

Situado em posição privilegiada para colaborar com a possível canonização de Cícero, Lira Neto preferiu fazer bom jornalismo.

Sabemos que toda informação é interessada diz ele sobre o acesso a documentos do Vaticano, através de canais não-oficiais. Ignoro, porém, que interesse teriam minhas fontes em fornecer esses documentos. Apenas garanti a eles que trataria do assunto com a maior isenção e rigor possíveis.

De fato, à parte a discussão teológica do milagre de Juazeiro a transformação em sangue da hóstia consagrada ministrada por padre Cícero a uma beata pouco se pode dizer que favoreça a santidade do biografado. O envolvimento explícito com a política conservadora da Primeira República é marcado pelo grande poder de articulação entre as elites e o povo, capaz de arranjar acordos entre coronéis e impor-se como força política até mesmo junto ao governo federal.

Tal influência é potencializada, em princípios do século 20, pelo arrojo maquiavélico do médico Floro Bartolomeu um ex-empresário da mineração que se utilizará do prestígio do padre para a realização de seus projetos de poder. Entre Floro e Cícero é estabelecida uma relação de apoio mútuo, agressiva e prolífica a um só tempo.

De certa maneira, um se utilizava do outro explica Lira Neto. Da mesma forma que o padre se deixava levar pela fala tonitruante de Floro, foi através dele que Cícero se reinventou como homem político.

Responsável pela implantação do primeiro jornal de Juazeiro, Floro com a benção de padre Cícero dele se utiliza para iniciar uma virulenta campanha pela emancipação da vila. A independência do município, por sua vez, desemboca no conflito armado entre Juazeiro e o Crato, guerra que se espalhará por todo o sertão do Cariri, culminando no cerco da capital do estado por um exército de jagunços, cangaceiros e beatos acompanhado, a distância, pelo presidente Hermes da Fonseca.

O saldo de mortos e os horrores praticados durante a Marcha da Sedição como se tornou conhecida a revolta não são exatamente compatíveis com a caridade cristã, embora se possa dizer, a favor de Cícero, que nenhuma voz soaria alta o suficiente para se fazer ouvir pela horda sanguinária. De qualquer forma, a repercussão política foi favorável a Floro, convocado pela República anos depois para arregimentar tropas que detivessem o avanço da Coluna Prestes e falecendo antes de ver a Coluna ludibriar seus homens, partindo para a Paraíba.

Se os fatos da vida do padre Cícero põem em dúvida sua inspiração religiosa, bem diversa é a mitologia que o envolve. Reconhecido popularmente como santo ainda em vida, Cícero teve sua hagiografia decantada em cordéis e na tradição oral, em que a identidade entre Jerusalém e sertão é voz corrente.

Deixadas de fora na primeira versão do livro, as narrativas fantásticas da vida do beato revelam as matizes da religiosidade que lhe plasmou a existência fé rebelde às instituições, calcada na experiência do mistério, passível de reunir caridade e violência, o sagrado e o profano. Compreender a terra e a gente de Juazeiro, e ouvir as histórias que lá se contam.

Talvez assim a justiça seja feita, talvez a razão da história e as razões do povo digam mais que documentos amarelados. Lá do alto, o Padim Ciço agradece.