Cenógrafos estreitam a parceria entre teatro e artes plásticas
Daniel Schenker *, Jornal do Brasil
RIO - Você vai ao teatro, mas de repente, olha bem ao redor, e tem a sensação de ter chegado a uma galeria. Semana seguinte, a sensação se repete, você vê uma instalação, um ambiente estilizado... Fica cada vez mais próximo o intercâmbio entre as artes cênicas e plásticas na cidade. Vários espetáculos vêm abolindo a tradicional divisão palco/plateia, com o intuito de incluir o espectador dentro do espaço cênico.
As propostas são bem diferentes, mas, seja como for, na temporada atual pode-se mencionar montagens como Corte seco, em que Marcelo Lipiani incorpora o aparato tecnológico para abordar o descompasso entre o tempo teatral e o cinematográfico e a problemática da falta de privacidade; Na solidão dos campos de algodão, versão da peça de Bernard Marie-Koltès potencializada pela desestabilização suscitada por cinco gangorras concebidas por Bia Junqueira; Laranja azul, texto de Joe Penhall redimensionado através da criação de José Dias, que confere um dado papel ao público; e Máquina de abraçar, de José Sanchis Sinisterra, que começa com a inserção do espectador numa sala de exposição de arte contemporânea, que abriga obras de Chelpa Ferro, Nuno Cais e Eduardo Coimbra, todas selecionadas pelo cenógrafo Raul Mourão.
Com formação em arquitetura e desenho industrial, Marcelo Lipiani fundou, com Christiane Jatahy, a Cia.Vértice de Teatro. Em Corte seco deu continuidade ao trabalho norteado pelo uso não-convencional dos espaços.
Plasticamente há uma sugestão de malha viária, como se o espectador visse de cima um mapa que os atores desenham com fita crepe. Investi numa estética moderna, que, porém, contrasta com cadeiras antigas que encontramos na Rua do Lavradio conta Lipiani, que conquistou o Prêmio Shell de melhor cenografia por Leitor por horas (2006), de Sinisterra.
Suas concepções sempre suscitam curiosidade, valendo lembrar dos ângulos variados propiciados pelas arquibancadas móveis em Carícias (2001), da relação de proximidade entre atores e espectadores na disposição encontrada para A falta que nos move... ou todas as histórias são ficção (2005) e da inclusão da plateia dentro do espaço em Leitor por horas.
O espectador entra em cena, mas não é exatamente um elemento cenográfico. Pode ser um voyeur diz Lipiani, mencionando o dispositivo cênico de Conjugado (2004), no qual reconstituiu divisórias de um pequeno apartamento.
Na solidão dos campos de algodão proporcionou a Bia Junqueira uma evocação da montagem do mesmo texto, a cargo de Patrice Chéreau, diretor especialmente afinado com a obra de Bernard-Marie Koltès.
Quando fui para França, no final de 1986, Chéreau estava se preparando para montar essa peça conta a cenógrafa, que acumulou experiência com Chéreau durante dois anos e meio no Théâtre des Amandiers Nanterre.
Os contêineres, que acomodam os espectadores diante da Praça do Centro Cultural Correios, são uma homenagem a Chéreau.
Eles fizeram parte da cenografia do espetáculo anterior dele, Quai-ouest (1986) diz, referindo-se a outra obra de Koltès. Em Na solidão dos campos de algodão ficavam empilhados num canto do espaço.
Nesta nova versão, Armando Babaioff e Gustavo Vaz se movimentam em gangorras de 10 metros de comprimento.
Procuramos colocar os atores em situação de instabilidade. A partir daí, pensei nas gangorras. Elas poderiam dar ao diretor a chance de construir uma partitura de movimentos explica Junqueira, acerca de sua criação, que visa a ampliar as possibilidades de leitura do texto. Também deveria ser possível fazer com que o palco se tornasse plano. Afinal, a horizontalidade está embutida no título da peça. Seja como for, caberia aos próprios atores lidarem com esse mecanismo. O conceito se esvaziaria diante de uma estrutura maquinada.
Bia Junqueira investe ainda numa contracena com a paisagem da cidade.
O cenário incorpora a urbanidade. Buscamos um piso de aspecto mais industrial diz.
Um dos cenógrafos que mais dialoga com as artes plásticas é Flavio Graff, a julgar por sua bem-sucedida parceria artística com Jefferson Miranda.
A instalação cênica reinsere o espectador como figura criadora, sobretudo, sob a perspectiva sensorial. O público se torna agente ativo comenta Graff.
Em Deve haver algum sentido em mim que basta (2004), a plateia era posicionada nas bordas do espaço cênico. Em E agora nada mais é uma coisa só (2005), transitava livremente por uma cena performática. Em O perfeito cozinheiro das almas deste mundo (2006), sentava-se em rasgos que integravam a concepção cenográfica. E em Nu de mim mesmo (2008) era confrontada com um proposital excesso de informações. De modo provocante, os espetáculos de Miranda colocam o espectador diante da experiência da perda. Muitas vezes, o que é dito pelos atores só é acessado por uma parte do público, dependendo do local onde esteja disposto.
Em Deve haver..., a expansão ou retração do espaço fazia com que o espectador experimentasse as sensações dos personagens. Trazemos à tona algo com que somos obrigados a lidar no dia a dia: o excesso de camadas de informações. Qual a nossa possibilidade de captá-las? pergunta Graff, que, em Site specific for love (2007), trabalho que costuma apresentar em galerias de arte, aborda a convergência entre performance e vídeo.
A possibilidade de virar médico por uma noite
Em Laranja azul, montagem assinada por Guilherme Leme, o público ganha um papel ao entrar no Teatro 3 do Centro Cultural Banco do Brasil e receber um jaleco. Ao vesti-lo é como se os espectadores passassem a fazer parte da equipe médica do hospital psiquiátrico onde está internado um jovem considerado esquizofrênico.
Era importante que a plateia se integrasse à ação dramática. Quis torná-la um elemento participativo. Por isto, eu e Leme decidimos que o elenco e o público deveriam ficar vestidos de modo igual confirma José Dias.
De início parece haver uma delimitação entre o espaço da plateia e o dos atores, na medida em que o embate entre os personagens ocorre sempre dentro de uma sala materializada, em cena, no formato de um aquário asséptico que não é iluminado por refletores, e sim por luminárias fluorescentes. No entanto, os atores nunca vão para a coxia. Quando saem de cena, sentam-se junto aos espectadores.
O fato de ocasionalmente fazer cenários de gabinete, como em Estranho casal (2009), não altera o meu desejo de envolver o público. Não quero que ele seja um mero observador e nem me limitar à linha divisória palco/plateia. Em Um piano à luz da lua (1987), que também foi feito no formato de palco italiano, o cenário se deslocava no espaço sublinha Dias, citando, respectivamente, a recente encenação de Celso Nunes para a peça de Neil Simon e a montagem de Celso Thiré para o original de Paulo Cesar Coutinho.
* Especial para o Jornal do Brasil
