O poeta Mário Chamie recria o estilo de Mário de Andrade
Alvaro Costa e Silva, Jornal do Brasil
RIO - Mário de Andrade foi buscar em Sêneca o conceito satírico de abóbora, para classificar os políticos burocratas que, na onda vingativa do Estado Novo, o demitiram do Departamento de Cultura de São Paulo, nos anos 30, encerrando, numa penada, o seu projeto de política cultural, tão ambicioso que cabia nele a matriz de um plano urbanístico para a cidade. No recém-lançado Paulicéia dilacerada, de Mário Chamie, os abóboras ganham nome e sobrenome de ex-prefeitos: Prestes Maia, Abrãao Ribeiro e Faria Lima.
A famosa demissão que motivou, entre outras coisas, a curta mas intensa estada do escritor no Rio é o ponto de partida no qual se apoia Mário Chamie para construir um livro de difícil classificação: é romance?, é ensaio?, é poesia?, é teatro?, é memória? pode-se dizer que é tudo isso, inscrevendo-se na linha experimental. Mas é sobretudo na recriação do estilo epsitolar-desaforado do autor modernista que reside a maior qualidade da obra, escrita em desacordo com as novas regras ortográficas e na qual interfere um certo Máior Hacime, personagem anagramático.
Nesta entrevista, Mário Chamie ou Máior Hacime? comenta a personalidade polifônica, sou trezentos, sou trezentos e cinquenta , do xará Mário de Andrade, que de certa forma o faz um precursor de Leonard Zelig, a criação do cineasta Woody Allen. Uma polifonia que beira a bajulação em alguns momentos mais críticos, como o da implantação do Pensionato Artístico paulista, fielmente retratado no livro. Chamie ainda reafirma a importância de Macunaíma, obra que anda meio no limbo:
Continua emblemática e seminal - garante ele.
No monólogo, Mário de Andrade confessa que construiu uma autoimagem, um personagem de si próprio capaz de falar de tudo para todos, polifônico, Zelig. O livro é uma tentativa de mostrar o Mário que existiu por trás dos disfarces?
Sem dúvida, o livro procura penetrar o emaranhado de autorreferências diversionistas que Mário de Andrade construía para si mesmo. Essas autorreferências comparecem em seus poemas, contos, crônicas, cartas, romances e outros escritos, de que Macunaíma, de certo modo, serve de síntese e súmula. O meu livro trabalha com essas auto-atribuições, distinguindo, porém, o homem da imagem, ou a pessoa de suas inúmeras personas e máscaras. Essa marca dúplice de Mário de Andrade vem já de Mário Sobral, seu pseudônimo de estreia, e culmina com o verso em que ele declara ser trezentos e cinquenta e não apenas um sujeito de uma só face. Alguma analogia com Leonard Zelig não é descabida.
Também se confessa um adulador. Para ser modernista, teve de se chegar ao conservadorismo da postiça aristocracia , que ditava os rumos do Pensionato Artístico. Ele teve uma trajetória intelectual pensada, planificada e executada?
Pode-se dizer que Mário tinha a forte característica de um minucioso etnógrafo aprendiz. Ele tinha o faro de que a pesquisa ou uma atividade organizada é um confiável trampolim para o exercício livre de nossa imaginação criadora. Nos anos que antecederam a Semana de 22, ficou claro para ele que, na sociedade paulistana da época, iniciativas modernizantes só seriam viáveis desde que houvesse o apoio estratégico e o aval mundano do aristocratismo conservador de então. No meu livro, eu descrevo, através das confidências de Mário, o cenário de convivência entre o novo e o arcaico, e aponto a necessidade que os agentes das inovações culturais tinham de cortejar ou adular os mantenedores de um passadismo provinciano, consolidado no seu poder econômico e social. O convívio de Mário de Andrade com o Pensionato Artístico e com os senhores da Villa Kyrial se pautava por essa adulação tática. Daí entender-se que o aristocrata Paulo Prado, autor do triste Retrato do Brasil, viesse a financiar e a promover a gárrula e irreverente Semana de 22. A postura arcaizante promovia a modernidade, com a suposta esperança de assimilar essa modernidade para melhor domesticá-la.
Por que o senhor escolhe a demissão do Departamento de Cultura de São Paulo como o momento que denota os monólogos marioandraninos?
Porque o impacto da demissão de Mário, do Departamento de Cultura de São Paulo, foi muito além de um simples ato administrativo e burocrático. A cidade de São Paulo vinha do trauma da derrota, na chamada Revolução Constitucionalista, de 1932. Mário e o seu grupo de amigos e colaboradores (entre os quais, Paulo Duarte, Sérgio Milliet, Rubens Borba de Moraes), de 1932 a 1935, conseguiram montar um consistente projeto de política cultural e urbana que extrapolava do município paulistano, e se propunha incorporar à capital paulista valores sincréticos e nacionais que valeriam para todo o país, já que a capital paulista começava a assumir o perfil de uma cidade cosmopolita e de grande afluxo migratório interno. Esse projeto, aplicado com sucesso de 1935 a 1937, foi interrompido pelo advento do Estado Novo. A demissão de Mário, em 1938, representou um golpe mortal para ele e para a Paulicéia que caiu presa de um crescimento megalomaníaco e predatório. O dilaceramento siamês dele e da cidade dá substância dramática ao seu monólogo póstumo, com o qual podemos dialogar, no curso da leitura de Paulicéia dilacerada.
Mário de Andrade era muito vaidoso?
Essa é primeira confidência que, no livro, nos faz Mário de Andrade. Ele se diz vaidoso, sim, mas adverte que a sua vaidade é, sobretudo, humilde. Qual o sentido desse paradoxo? Talvez o sentido de que, embora se orgulhasse de sua versatilidade polifônica, ele sabia também que o preço da polifonia é o conhecimento relativamente limitado de cada um dos múltiplos assuntos que ela comporta.
O livro revela um Mário de Andrade urbanista. Fale sobre esse lado pouco conhecido dele.
O projeto de atividades culturais que ele, com Paulo Duarte, criou para o Departamento de Cultura, na prefeitura de São Paulo, se situa num momento crucial das transformações pelas quais a cidade começava a passar. Mário tinha consciência das mudanças havidas até então na Paulicéia, nas três primeiras décadas do século 20. De fato, São Paulo até o fim do século 19 foi de povoado à vila, e de vila a burgo um pouco maior. Na década de 30 e começos dos anos 40, porém, já se projetava como metrópole que exigia estudos de planificação de desenvolvimento urbano que levasse em conta o aumento brusco da população naquele período. A constituição do Departamento de Cultura significava a célula-matriz dessa planificação, cujos princípios básicos se resumiriam ao seguinte: preservar a paisagem física e criar as melhores condições para a formação de uma civilizada paisagem humana. Em outras palavras: construir bibliotecas, museus, teatros, parques, jardins, monumentos, edifícios e vias públicas, em ritmo sustentável. São Paulo, ao apostar no automóvel e a descuidar do tráfego subterrâneo, pôs-se a depredar a paisagem física e a degradar a paisagem humana, em seu direito à urbanidade.
Curiosa a história em que Oswald de Andrade critica o afrancesamento da tropicalidade, em artigo de 1915.
Antes de Oswald conceber a sua poesia pau-brasil e vestir a pele de sua antropofagia, ele vacilava entre os encantos de uma afrancesamento metropolitano e o desejo de valorizar a exuberância nativa de nossa natureza tropical. Tanto que, em 1915, a sua opinião sobre o Pensionato Artístico compunha-se mais com a opinião tradicionalista de Monteiro Lobato do que com o ponto de vista mais crítico de Mário de Andrade. Por isso, no livro, as relações tensas entre Oswald e Mário só vão se apaziguar na vizinhança dialogada de seus túmulos, no cemitério da Consolação.
Quem é Máior Hacime?
É preciso, primeiro, perceber que a palavra Máior, aqui, tem acento agudo no á. Trata-se, portanto, da palavra latina máior, que significa mais experiente (em espanhol, significa mais velho ou mais antigo). Máior é anagrama de Mário, assim como Hacime (com ou sem o H aspirado) é o anagrama de Chamie. O anagrama, no caso, é o espelhamento das falas e vozes entrecruzadas dos dois Mários, e de outros interlocutores presentes no livro.
O que Paulicéia dilacerada guarda de semelhança com a peça teatral Monólogo póstumo de Mário de Andrade, também de sua autoria, e cuja primeira leitura é de 2001?
Em 2001, um grupo de teatro amador me pediu que eu preparasse um texto que, eventualmente, viesse a ser encenado num dos teatros do Sesc-São Paulo. Enfronhado que estava no assunto demissão de Mário , eu já tinha escrito alguns monólogos póstumos passíveis de encenação ou de leituras cênicas. Portanto, o espectro de Paulicéia dilacerada continha já, em 2001, o desenho do seu corpo.
E os diários escritos como diretor do Departamento de Cultura relatadas a ambição, a maldade, a intriga, a estupidez, a safadeza que relação eles têm com o seu livro?
Esses diários revelam um pouco a seriedade monástica e conflitante de Mário. E, de algum modo, isso também me diz respeito. Quando colhi a informação de que ele, no dia a dia do Departamento, anotava o seu trato com acontecimentos e pessoas, me surpreendi com a coincidência. Por acaso, no exercício das funções de secretário de Cultura, da mesma cidade, eu, a cada fim de expediente, já em minha casa, tinha o cuidado de registrar minhas impressões sobre fatos, iniciativas e personalidades com que eu tivesse mantido contato. Eu procedia assim para poder tomar decisões posteriores mais ponderadas e equidistantes. As anotações de Mário chegaram a duas mil páginas. As do meu diário, talvez andem por aí. O que sei é que, na peneira do tempo, o saldo de intrigas, estupidez ou maldades , a que Mário se refere (e de que eu dou testemunho) é significativo e nada desprezível...
A que gênero pertence Paulicéia dilacerada? Romance, ensaio, teatro, poesia? Há análises sobre Drummond, Bandeira, Vinicius de Moraes, João Cabral de Melo Neto, Pedro Nava.
Paulicéia dilacerada pode identificar-se com vários gêneros, por não se limitar a nenhum gênero específico. Então, é romance, porque o narrador narra-se a si mesmo e lida com coadjuvantes que, por sua vez, narram a trama e a trajetória do homem Mário de Andrade, envolvido com os seus personagens afins. É conto, porque cada momento do livro vale por si, mas estabelece com os outros momentos elos sequenciais que dão conformação orgânica ao seu entrecho geral. É memória? Sim, porque se fundamenta em fatos e episódios reais, cuja exposição é feita pela onisciência de um narrador póstumo e atemporal. É, também, ensaio porque os dois Mários disponibilizam os seus arsenais críticos para a leitura entranhada dos pronunciamentos, também póstumos, que Drummond, Manuel Bandeira, Vinicius ou Pedro Nava fizeram sobre a morte do amigo demitido. É poesia, no sentido de que o livro teatraliza uma narrativa lírica extraída de poemas que outros poetas e o próprio Mário escreveram sobre o seu fundo padecimento. Ademais, Paulicéia dilacerada, no diapasão da rapsódia, compõe-se de 17 momentos e um colofão, a exemplo do livro Macunaíma, composto de 17 capítulos e um epílogo.
Romance, narrativa, rapsódia o próprio autor tinha dúvidas de como chamá-lo qual o lugar que ocupa hoje Macunaíma? Não lhe parece que o livro vive numa espécie de limbo, pouco lido e comentado, diante de sua real importância?
Macunaíma (o livro e o personagem) continua emblemático e seminal. É uma das poucas obras de nossa literatura que escapou do campo restrito das abordagens acadêmicas, para virtualizar-se, revitalizada, em outras linguagens ou meios de comunicação como o teatro, o cinema, a dança, a televisão etc. Basta nos lembrarmos do Macunaíma reinventado por Antunes Filho, ou do imaginário Macunaíma cinematográfico, de Joaquim Pedro de Andrade. Acresce a tudo isso a sua inesgotável fortuna crítica.
O Brasil de Mário, como ele acreditava, era o Brasil do boêmio, do padre e do milico ?
O conjunto de sua obra dá relevo a essas três vertentes que reúnem o boêmio, o padre e o milico. O boêmio liga-se a visão carnavalesca e arlequinal de que Mário se serve para aproximar a nossa cultura popular à nossa cultura literária. A peregrinação que Macunaíma faz do Uraricoera a São Paulo é sempre um corso, um séquito ou cortejo alegórico. O padre associa-se às nossas catequeses e escolaridades pré-universitárias, que nos remetem aos primórdios de nossa formação espiritual e artística. Dessa ótica, Mário vai de Aleijadinho ao padre Jesuíno do Monte Carmelo, passando pela junção da arte sacra de nossas igrejas barrrocas com a coreografia quase litúrgica de muitas de nossas danças dramáticas, descobertas e pesquisadas por ele. Quanto ao milico, o próprio Mário, em seu livro Losango cáqui, se faz de um recruta que se divide entre o bocejo da preguiça e a ordem de sentido prepotente.
Quem são os abóboras de hoje?
Os abóboras, de hoje, são aqueles que cultivam a mediocridade do bom senso, em desfavor da ousadia de um senso criativo Eles patinam entre o argumento de autoridade e o temo reverencial das convenções estabelecidas. O prefeito que demitiu Mário de Andrade tinha o perfil exato de um abóbora convicto. Foi Sêneca quem lançou o conceito satírico de abóbora , tendo por alvo a deificação mumificada do imperador Cláudio pelo Senado Romano.
