Marcelo Rubens Paiva aborda a traição em 'A noite mais fria do ano'

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Luiz Felipe Reis, Jornal do Brasil

RIO DE JANEIRO - Da janela da frente de seu apartamento, à beira da Praia do Leblon, Marcelo Rubens Paiva visualiza um cenário desolador. Ao cair da noite e pela madrugada adentro a orla repousa deserta, o vento frio balança as amendoeiras, uma chuva fina, impertinente, molha o asfalto e pinta de cinza a paisagem. No calçadão, sentado numa mesa plástica de um quiosque em frente ao Jardim de Alah, na divisa entre Leblon e Ipanema, um fotógrafo (Renato) aguarda a chegada do editor (Caio) do jornal em que trabalha. No tête-à-tête, o chefe revela que é o amante da mulher do subordinado. Diz também que está disposto a disputá-la. E assim, o encontro, aparentemente profissional, serve como pretexto para o acerto de contas que marca o início de A noite mais fria do ano, espetáculo escrito e dirigido por Marcelo Rubens Paiva. Em cartaz a partir de amanhã no Teatro Poeira, a peça é recheada por ciúme, frustração e amores perdidos, temas caros à obra do autor.

A praia é o símbolo da felicidade e aí comecei a me questionar sobre como os cariocas vivem a sua depressão no meio dessa beleza exuberante, diante dessas imagens lindas. Vejo as pessoas sentadas de frente para o mar e me questiono sobre o que pensam ou sofrem conta o autor e diretor, nascido em São Paulo mas que viveu no Rio até os 12 anos.

Relações antagônicas

O autor buscava contraste. Diz que tanto a literatura como o teatro se abastecem de relações antagônicas.

Quando um dramaturgo se debruça sobre o amor, o casamento e a felicidade do início, em que tudo promete, vê que os relacionamentos terminam. No meio deles há ódio e traição, assim como uma incapacidade de desvinculação afirma.

Mais do que o início da peça e a fagulha que acende o primeiro conflito em cena, o embate entre os personagens, na orla, serve como ensejo para o descortinar de uma segunda peça. Para contar duas histórias onde o tema é a separação de um casal, o autor recorre à metalinguagem. Enquanto os atores interagem com a plateia sobre a função do teatro e os dilemas do amor, num misto de improviso e provocações, Caio e Renato desmontam o cenário e montam outro: o apartamento onde vive Dan.

O primeiro ato é a primeira parte de uma peça escrita por Dan, que é um autor corroído de ciúmes pela ex-mulher. Ela o abandonou, mas como apanha do marido volta a procurá-lo conta.

Assim como em seus romances, as peças de Rubens Paiva se dispõem a investigar e refletir sobre as relações de afeto do homem moderno. Em A noite mais fria do ano ele coloca em jogo os limites, os medos, os vazios e as obsessões de amor através da relação deste ex-casal.

Busco entender porque pessoas que se amam não conseguem ficar juntas. E também por que há os reencontros... As pessoas não conseguem se distanciar totalmente do passado explica. Meu trabalho é reflexo do que vivemos hoje em dia. A duração do casamento é cada vez mais curta, as relações de afeto são cada vez mais fugazes, assim como os amores e amizades.

Temas recorrentes desde que escreveu a peça E aí, comeu? (1998) e presentes nos romances Malu de bicicleta e o mais recente, A segunda vez que te conheci, o rompimento de relacionamentos, o medo de se entregar ao amor, paixões, tentações e infidelidade ganham novo fôlego.

É o que eu vejo ao redor. Assim como a maioria das pessoas, fico surpreso em ver como lidamos com as tentações da vida. Antigamente o casamento era muito fácil analisa. As mulheres ficavam em casa e, eventualmente, se apaixonavam pelo padeiro ou pelo carteiro. Eram como Madame Bovary. Criavam suas fantasias, mas permaneciam em casa. Hoje, todos temos autonomia e liberdade. Se a mulher quiser, é só ir embora. Com a sua emancipação abriu-se um novo e pouco explorado campo para a dramaturgia contemporânea. É um tema novo.

Casos autobiográficos, causos ouvidos em botecos, histórias de amigos abastecem a imaginação do autor.

Misturo ficção e realidade até não sei mais o que é o que. Me interessa saber por que escritores e dramaturgos revelam suas angústias através da ficção, o teatro e a literatura como válvula de escape. Pode ser duro para quem assiste ou lê, mas o autor escreve apenas para si.

No palco, Rubens Paiva reuniu um grupo seleto de atores. Na verdade, diretores, autores e produtores de companhias residentes da famosa Praça Roosevelt, o fervilhante polo teatral da capital paulistana. Contracenam juntos Alex Gruli (Cia Os Fofos), Hugo Possolo (Parlapatões), Mário Bortolotto (Cemitério de Automóveis) e Paula Cohen.

É a primeira vez que eles trabalham juntos. Paula é minha musa, Mário é meu parceiro de noitada. Juntar todos é demais.

Em 2010, o reencontro com o cinema

Desde que o seu primeiro e mais premiado romance, Feliz ano velho (1982), foi levado às telas, sob direção de Roberto Gervitz, em 1987, Marcelo Rubens Paiva passou a se interessar por mais um campo de linguagem, a confecção de roteiros cinematográficos. Filmado no início do ano pelo diretor Flávio Tambellini o romance Malu de bicicleta (2004) chega aos cinemas no início de 2010. Protagonizado por Marcelo Serrado e Fernanda de Freitas, a Malu, o filme é apenas o início de uma série de outras adaptações.

Não me envolvi em nenhuma etapa do processo de Feliz ano velho. Dei liberdade total para a adaptação da obra. E a partir desse filme, meus outros livros começaram a gerar interesse e aí comecei a pedir para dar uma olhada e meter a mão nos roteiros. Quando fui olhar o primeiro tratamento do roteiro para Malu, percebi que estava tudo errado. E aí começamos a trabalhar em conjunto até acertamos.

Peça encenada por Marcelo Serrado e Otávio Müller, em 2002, No retrovisor ruma às telas com roteiro assinado pelo próprio autor e com direção de Paulo Mendonça Filho.

É uma preocupação em deixar o filme bem próximo do clima da peça. Roteiro é uma terceira linguagem, completamente diferente das outras duas. É preciso conhecer a técnica. É claro que, como sou amigo do Mauro Lima e do pessoal da O2, do Fernando Meirelles, eles sempre me mandavam roteiros para eu dar uma analisada. E quando eu comecei a realmente mergulhar na linguagem cinematográfica virou uma avalanche.

A tal bola de neve que recobre de trabalho os próximos meses do autor começam por E aí, comeu?, que será produzido por Augusto Casé. Já os direitos de Blecaute foram vendidos para a Pródigo filmes e a versão será dirigida pelo diretor niteroiense Caito Ortiz. O último romance publicado por Rubens Paiva, A segunda vez que te conheci receberá tratamento cinematográfico ou se tornará série de TV. Ambos os formatos serão produzidos pela Conspiração Filmes e guiados pela direção de Carol Jabour.