Romance 'Sinuca embaixo d'água' traz atmosfera carregada
Ieda Magri*, Jornal do Brasil
RIO - João Antônio dizia que sinuca se aprende perdendo sono e gastando sola de sapato ao redor da mesa. Não poucas vezes o jogo é a chave para entender a estrutura que sustenta seus contos, em especial os de Malagueta, Perus e Bacanaço e as idas e vindas dos três jogadores, as negaciadas, manhas dos bons de taco que perdem jogadas fáceis para melhor ganhar as outras. O bom jogador, insistia João Antônio, vê tudo o que se passa no ambiente do jogo, e é como se dissesse com isso que escrever exige muita afinação dos sentidos para captar a estratégia certeira no posicionamento das bolas.
Carol Bensimon, em seu Sinuca embaixo d'água, coloca três bons jogadores ao redor de uma mesa: Bernardo, Camilo e Polaco, os narradores principais deste livro que não tem nada de sinuca, senão o principal, o mote do jogo e da tensão provocada por ele. O ambiente onde estão, fisicamente, as mesas, as bolas e os tacos é um bar à beira de um lago numa cidade pra lá de bem caracterizada e que nem por isso recebe nome próprio. Mas o jogo de verdade se dá mesmo fora dali, na vida que pesa aos narradores pela ausência de Antônia, a personagem principal, podemos dizer. A bola branca que derruba as outras.
A sinuca, quando se joga de verdade sem o descompromisso do famoso leite-de-pato é jogo tenso, suado, arrancado de muita perspicácia. Imaginar uma sinuca embaixo d'água implica em pensar um movimento mais pesado, mais lento, como numa atmosfera de sonho. O barulho das bolas se chocando fica abafado, constrangido de mostrar-se alegre. É exatamente este o clima, o tom do livro: uma atmosfera carregada, abafada, que guarda uma inflamação no peito das personagens. Mas nem por isso o ritmo da narrativa é lento, pesado. Ao contrário, é deslizante como os patins de Bernardo, que abre e encerra o livro. Contrastando, pois, positivamente, o ritmo da escrita se choca com o que se passa nas personagens, e constroi a trama; lembrando que o ritmo do mundo continua o mesmo, apesar de.
O que há de jogada estratégica mais certeira no livro de Carol é a variação do ponto de vista entre os narradores, que além dos três principais, se distribui entre outros quatro: Helena, Gustavo, Lucas e Santiago. Personagens secundárias, mimetizam a posição dos jogadores que estão nas bordas, olhando o que se passa na mesa enquanto esperam sua vez de jogar. Mais espectadores do que jogadores, dividem a estia e, no caso da história do livro, ficam implicados no acontecimento, mesmo que perifericamente: Helena precisa dar a notícia do acidente que envolveu Antônia, é jornalista; Gustavo trabalha numa agência de propaganda e deve participar de uma campanha sobre trânsito. Ambos conheciam Antônia. Lucas é um menino que vê o acidente pela janela.
Os três jogadores principais se revezam nas jogadas e passam amigavelmente o taco um ao outro; sem condescendência, no entanto. Como todo bom jogador, um desconfia do outro, julga seus movimentos, se compara e passa a vez. Cada um com seu jogo, com sua vida e sem Antônia. Cada um sente essa ausência do seu jeito e a linguagem acompanha, ou melhor, talvez dite seu comportamento. Camilo, o irmão, enfeixa as características mais ao par com a agressividade, uma culpa de fundo que não o deixa encarar o fato com limpeza. Espécie de marginal, de rebelde, parece procurar a morte e se sentir preterido por ela. Carrega o peso de saber que, se a lógica fosse observada na vida, era ele que devia estar morto, porque mais inconsequente que a irmã. Polaco, o dono do bar em frente a casa onde Antônia morava, point onde todos se encontravam. Uma foto do enterro saída no jornal mexerá bastante sua vida, desde o início da narrativa marcada por outra ausência; por outro início. É a personagem mais rude e também a mais nostálgica. Bernardo, o amigo enamorado, envolto numa relação complicadíssima que só vem à tona para ele depois da morte de Antônia, é o tipo ideal para um poeta. Leitor de T.S. Eliot e de Dostoiévski, aluno do curso de letras, ouvinte atento de jazz, o mais culto e o que sente mais profundamente a perda, é também o que melhor se realiza nos movimentos da linguagem construída por Carol. Sua narrativa orbita sem perder o equilíbrio entre a poesia e a agressividade. Ainda sobre linguagem: é ela, mais que tudo, que expõe as motivações internas das personagens, suas confusões, suas complicadas. Carol faz uso de parênteses e de vírgulas que organizam as frases de modo a não tirar delas sua complexa construção, colocando em cena as manemolências, os meneios próprios da expressão, que não obedecem uma forma certinha de dizer aquilo que explode na fala. De novo, há o equilíbrio: o derramado do monólogo interior vazado numa linguagem seca, enxuta, cortada certeiramente.
Sinuca embaixo d'água se compõe, assim, sobre a ausência de Antônia, morta num acidente de carro, sobre os escombros que restam, sobre as paredes que caem e exigem que se construa outra coisa no lugar. É essa ausência que é sentida a cada movimento das personagens que precisam dar sentido à existência mínima, diária, ao cotidiano de trabalho, de hobbies, de volta às aulas; carregando uma tragédia no corpo que é visto como se dele faltasse uma parte, Antônia. É como se sente principalmente Bernardo, sempre visto ao lado dela: A professora Estela dá uma risadinha, e seu olhar orbita de novo, constrangido, que é como ficam ao me verem sem Antônia, chão, céu, direita, esquerda, e finalmente encontra a continuação da conversa no jornal, que ainda está aberto no meu colo .
O romance está repleto de índices da cultura contemporânea: o rock, o jazz, os esportes, a vida noturna, a literatura canônica e a não, os ambientes frequentados pelos jovens da idade de Antônia, e a integração recíproca entre cidade e cultura oferece um painel significativo da vida pulsante que se mantém de pé ao redor da mesa sempre em busca da melhor jogada.
* Autora da ficção Tinha uma coisa aqui (7Letras, 2007) e doutoranda em literatura brasileira pela UFRJ.
