Em entrevista, Fabrício Corsaletti fala sobre novela 'Golpe de ar'
Alvaro Costa e Silva, Jornal do Brasil
RIO - A Buenos Aires da novela Golpe de ar , de Fabrício Corsaletti, é uma cidade que não existe, e o narrador está cheio de razão em esticar a noite portenha até o dinheiro acabar. Não é que a cidade não exista, mas só existe daquele jeito para ele, que passa os dias bundeando nas ruas de Palermo, Recoleta, San Telmo e enchendo a cara nos bares com que esbarra no caminho ou nos boliches, para entrar logo no clima e mandando ver no matambre de cerdo y ensalada mixta.
Vejamos: em que outro lugar você está voltando para casa às 10 da manhã o céu nublado descansava as pálpebras, e o frio era perfeito pra fumar com a cabeça jogada pra trás e o corpo esparramado no banco e ouve o taxista dizer o seguinte: É bom saber que alguém ainda se diverte ? O cara fala isso, e ainda deixa fumar no carro, com o perigo de queimar o estofado do banco.
Tudo gira em torno do assim chamado e grifado acontecimento, ou seja, a irrupção de cinco meninas na calçada em frente ao apê do narrador, vozes afinadíssimas cantando: Na hora da sede você pensa em mim, lá lá iá/ Pois eu sou o seu copo dágua . Marta, Sílvia, Mel, Lis, Sandra adoram samba e sabem tudo sobre moda, teatro, dança, literatura, cinema e bares descolados Criadas a muito Danoninho e muita Folha de S. Paulo , estão de férias em Buenos Aires e querem apenas se divertir. Antes, porém, que tal um banho de água quente na casa do sortudo?
Escrito em forma de diário passado a limpo e nesta passagem a matéria íntima se transforma em grande literatura Golpe de ar pega o leitor pela ternura estranha que envolve a temporada na cidade estrangeira e a dublagem silenciosa das relações pessoais. Um livro que faz da simplicidade um meio certeiro de atingir o leitor. Se algo me gusta, es viver/Ver mi cuerpo en la calle . como nos versos do poeta espanhol Blas Otero, escolhidos por Corsaletti como o tom da novela.
Autor de Estudos para o seu corpo, lançado em 2007 e que reúne quatro livros de poesia, e King Kong e cervejas, coletânea de contos de 2008, Fabrício Corsaletti também escreveu letras para algumas melodias, mas disfarça bem. Como se pode conferir nesta entrevista pingue-pongue, vapt-vupt.
Por que Buenos Aires?
Em 2005 passei seis meses em Buenos Aires e quando voltei senti necessidade de escrever esse livro.
Pergunta inevitável: o que a novela tem de autobiográfica?
Como tudo que escrevo, parti nesta novela de uma situação autobiográfica e depois alterei a biografia conforme o livro pedia.
Tem-se a impressão que o narrador está passando um diário a limpo.
Legal essa observação, tem a ver. Mas como disse na resposta anterior, modifiquei o diário de acordo com as exigências internas do texto.
O narrador é poeta. Mas parece estar vivendo completamente distanciado da literatura, confere? E quando tenta escrever não consegue.
Não sei. Ele pode também ter se distanciado da literatura apenas no mês que passa com as meninas. O que ele não está procurando é o mundo literário, conhecer escritores etc.
São poucas as referências literárias no livro. Quando se fala em Ernesto Sábato uma lenda literária argentina o que parece importar é o bar Britânico, onde ele escreveu parte de Sobre heróis e tumbas. Você diria que, para o narrador, os bares e cafés de Buenos Aires são mais importantes que os escritores argentinos?
Sim, o que importa para esse narrador é a cidade. Por outro lado, esta cidade já incorporou alguns de seus autores nos seus lugares públicos. O narrador não sai, por exemplo, da Praça Cortázar.
A exceção ao alheamento literário é a passagem na qual o narrador descobre um poema de Blas de Otero, Aire livre , que é mais ou menos lembrado no título da novela. Qual a importância deste poema em particular para o personagem e a narrativa?
Acho que o poema funciona como uma espécie de declaração de princípios do narrador, embora o poema não seja dele. Caberia perfeitamente como epígrafe do livro.
O Fabrício Corsaletti gosta da literatura argentina?
Gosto muito de Cortázar, Alejandra Pizarnik, Oliverio Girondo. Li bastante Borges também, mas não é exatamente o tipo de literatura que mais me agrada. Gosto mais da sua poesia, inclusive, do que dos contos.
Para o narrador, os turistas são os outros. Parecem estar atrapalhando ou invadindo a Buenos Aires dele, confere?
De certa forma, sim. O narrador não se sente um turista completo. Ele se vê mais como um autoexilado. Mas talvez dizer que os turistas o atrapalhem seja um pouco demais.
As meninas gostam muito de samba. O que o samba tem a ver com elas?
Que pergunta difícil, acho que não sei respondê-la.
Num papo do livro, é citado o Dia Mastroianni. É também título de um livro de João Paulo Cuenca. Você leu?
Li, mas foi o Cuenca, que é meu amigo, quem roubou a expressão Dia Mastroianni de mim.
Você leu o romance Cordilheira, de Daniel Galera, que também se passa em Buenos Aires?
Ainda não, mas quero ler.
Qual a sua ligação com a nova geração de escritores brasileiros? Você se sente próximo de alguém?
Leio uma coisa ou outra e me sinto mais ou menos próximo desses escritores. Gosto, na prosa, do Daniel Galera, para citar um nome, e na poesia, da Angélica Freitas.
Na prosa, quais seus autores prediletos?
Rubem Braga, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Hemingway, Faulkner, Salinger, Cortázar, Dostoiévski e Tchékov .
Você tem um livro de poesia pronto?
Tenho dois. Um de poesia infantil, Zoo zureta, que sai este ano. E um de poesia adulta, Esquimó, que sai no ano que vem.
Ano passado saiu King Kong e cervejas, reunião de contos. Você tem a intenção de seguir escrevendo tanto prosa como poesia? Qual a maior diferença entre os dois?
Quero escrever pelo menos mais um livro de prosa, que aliás já estou escrevendo. Poesia, se tudo der certo, ainda vou escrever bastante. Acho que a maior diferença é que prosa dá para programar o trabalho. Acordo, escrevo e, no dia seguinte, continuo de onde parei. Com poesia a coisa é mais caótica.
E as letras de música?
Ah, nem me considero um letrista. Fiz uma ou outra letra com a ajuda de amigos músicos e só.
