Modesto Carone lança coleção de ensaios sobre Kafka
Alvaro Costa e Silva, Jornal do Brasil
RIO - Recentemente o catalão Eduardo Mendoza autor do romance A cidade dos prodígios deixou muita gente de queixo caído ao afirmar, numa palestra sobre aspectos da narrativa literária, que Kafka era mau escritor e sabia disso . Riso nervoso, mexer de cadeiras, burburinho, uma vaia mais audível, poucas palmas mas entusiastas a plateia presente à sede da Fundação Juan March, em Madri, reagiu na hora (no You Tube há um filme, com a fala e a reação). Indiferente, Mendoza continuou sua peroração: Quantos aqui leram O castelo, O processo e A metamorfose? Muitos poucos levantaram a mão. É porque Kafka não tinha sentido de narração. Começa O processo dizendo que condenaram a Josef K., e ele não sabia por quê. Hombre, assim não se começa um livro; se acaba .
Pois bem, o escritor Modesto Carone, um dos maiores especialistas em Kafka no Brasil, e que, como tradutor, há mais de 20 anos frequenta os alicerces da obra do autor tcheco, absolutamente não concorda.
O que mais me surpreende na palestra de Eduardo Mendoza, que não conheço, é a afirmação central de que Kafka era um mau escritor e sabia disso escreve Carone, literalmente à mão, na troca de faxes com o Ideias (ele não usa computador). A ideia de que começava os livros muito bem e depois se perdia é no mínimo engraçada. Os livros de contos que o escritor tcheco publicou entram nessa categoria? Mau humor sem argumento não vale em literatura; se valesse, Mendoza estava mal de vida. Por conta própria.
Eduardo Mendoza, aparentemente, não anda sofrendo do fígado. Seu último livro, engraçadíssimo, El asombroso viaje de Pomponio Flato, recebeu ótimas críticas e vendeu só na Espanha 400 mil exemplares. Aqui no Brasil a miopia dos editores o condena ao desconhecimento. Trata-se de escritor elegante e deliciosamente paródico. Pode ter passado do ponto na conferência (cujo título é um chiste só: Teoria geral do romance: balanço trimestral). Ao menos, e isso não é pouco hoje em dia, foi corajoso ao dizer o que pensa.
Pitacos não entram
No livro que Modesto Carone acaba de publicar Lição de Kafka, reunindo ensaios, conferências, aulas e escritos em parte inéditos está dito que a fortuna crítica do ficcionista já ultrapassava em 1980! a cifra de 10 mil títulos, entre livros e artigos de porte. Os pitacos não entraram na conta. A quantas anda atualmente essa fortuna crítica? Dobrou, sem dúvida, dado o interesse que desperta o nome do escritor do qual se originou um adjetivo que encontrou acolhida em várias línguas e vários dicionários, inclusive o nosso Aurélio. Saiba que, ao digitar kafkiano agora, não apareceu aquelas cobrinhas vermelhas embaixo.
O grande mérito da coletânea é deixar claro o que deve ser levado em conta nessa barafunda. No artigo A celebridade de Kafka , publicado na revista Entreclássicos, Carone aponta a hipertrofia que o adjetivo mais que consagrado tem sofrido: É comum dizer que kafkiano é tudo aquilo que parece estranho, inusual, impenetrável e absurdo o que descaracteriza o realismo de base da prosa desse autor. Pois a rigor é kafkiana a situação de impotência do indivíduo moderno que se vê às voltas com um superpoder (Übermacht) que controla sua vida sem que ele ache uma saída para essa versão planetária da alienação .
O ensaio central e indispensável do livro é também um dos mais antigos: O parasita da família nasceu de uma conferência na Sociedade de Psicanálise de São Paulo, em 1983, por ocasião do centenário de nascimento de Kafka. Apesar da distância no tempo, continua insuperável como decifração da novela mais conhecida do escritor de Praga. Alguém devia mandar o texto para Eduardo Mendoza. Talvez ele mudasse de opinião a respeito da estrutura narrativa de A metamorfose, escrita no outono de 1912, quando o autor tinha 29 anos. O trecho a seguir bate de frente com a tese do catalão: Uma das coisas que melhor caracterizam a forma dessa novela é o fato de nela estar invertida a construção narrativa tradicional, uma vez que ela puxa do fim para o começo o clímax, que é a metamorfose. Ou seja: aqui a coisa narrada não caminha para o auge, ela se inicia com ele e com isso a novela se sustenta mais sobre as decorrências de um fato fundamental do que numa progressão rumo a ele (de maneira semelhante, aliás, ao que acontece no Édipo-Rei, de Sófocles) .
Outro trecho, este do posfácio a O processo na tradução do próprio Carone, volta a abordar o tema: Kafka concebia a abertura da narrativa como um golpe de mestre, na medida em que ela não só dá o tom do que é narrado como também baliza a lógica interna do relato .
No inédito Kafka e o processo verbal , Modesto Carone investe contra o que classifica de drama a comoção que cerca a obra de Kafka à circunstância de ela não ter sido destruída por Max Brod, amigo e testamenteiro.
Essa história de destruir a obra é, de fato, um drama confirma Carone no fax. Porque no segundo pedido a Brod, por escrito, ele poupa da destruição os sete livros que havia publicado em vida, dos quais cuidou pessoalmente da publicação. Entre eles está A metamorfose. A sorte é que Brod o desobedeceu por completo.
Rir até chorar
O tradutor, em outra passagem, conta que Kafka, ao ler o primeiro capítulo de O processo para alguns amigos, riu até chorar apenas uma cena mas que vale para desfazer a impressão generalizada do escritor inseguro e hesitante, do homem em eterna luta contra seus demônios um retrato, aliás, que está no recém-lançado Kafka e a marca do corvo (Geração Editorial), uma biografia romanceada pela brasileira Jeanette Rozsas.
Sabe-se que ele também ria muito ao ler os romances do suíço Robert Walser, outro que sofre com a falta de visão dos editores brasileiros. Apenas para fazer uma comparação, na Argentina e Portugal a obra de Waler está traduzida quase na totalidade, enquanto que entre nós só o romance autobiográfico O ajudante ganhou tradução (de Zé Pedro Antunes), em 2003.
Kafka tinha a maior admiração por Robert Walser, que não é muito conhecido entre nós, embora seja um ótimo escritor diz Carone. A influência dele sobre Kafka (ou a confluência entre ambos) foi evidente no início da carreira. Quando chegou à maturidade (aos 25 anos, com O veredicto), ela diminuiu muito, porque foi substituída por Kleist e Flaubert. Mas o riso de Kafka em relação a Walser era, claro, de admiração. Além do quê, ele ria como todo mundo ri. Era inclusive um grande imitador.
Carone considera o Kafka prosador como o mais enxuto, problemático e surpreendente discípulo confesso de Gustave Flaubert no século 20 . Uma ligação que não se restringe apenas ao famoso mot just.
As descrições exatas de Flaubert também passaram ao patrimônio narrativo kafkiano, bem como a concepção flaubertiana do trabalho literário como arte ensina o ensaísta.
Contudo, a mais insuspeita das influências é a de Charles Dickens, um narrador da escola do século 19 por excelência. Modesto Carone a sustenta e dá a dica:
As marcas de Dickens na obra de Kafka são mais visíveis em alguns contos curtos, como O cavaleiro do balde( há uma tradução inédita deste conto em Lição de Kafka), e no romance América (ou O desaparecido).
