Contos, poemas e ensaios recuperam força da língua portuguesa

Por

Lúcia Bettencourt*, Jornal do Brasil

RIO - Do verbete ao conto, da poesia ao ensaio, as palavras que compõem o Dicionário amoroso da língua portuguesa, organizado por Marcelo Moutinho e Jorge Reis-Sá, receberam um tratamento que as resgatou do uso diário, já desgastadas e sem lustro. Examinadas e explicadas, transformadas, expostas em vitrines ou escondidas entre obsessivas repetições, elas saem de seu marasmo e recuperam as forças.

No primeiro verbete, um conto de Marcelo Moutinho, a palavra escolhida (água) se esconde por trás de uma cortina que insistia em fechar . Apenas uma única vez se deixa surpreender e, no entanto, está presente nos ladrilhos suados, na toalha molhada, no banho a portas fechadas. E, com força de enxurrada, pinga nas lágrimas que suspeitamos terem sido engolidas pelos dois personagens da breve e poderosíssima história. Já no verbete sobre a incomum serendipidade (Bruna Lombardi), o sentimento se ausenta. Um pseudocientificismo nos oferece significado e etimologia do prazer da descoberta do desconhecido, gerando uma reflexão sobre a dificuldade de explicar a emoção. De pura emoção, quase um grito de lembrança, tratam os verbetes violeta e rosa (Paulo Brody, Jorge Rocha), que viram gente, mais que gente, uma amante e uma avó querida e saudosa. A saudade de Antonio Torres, por sua vez, se personifica para explicar, sem pressa e com humores, sua existência na língua, reverberando em versos e modinhas, em fatos da história e nas histórias dos fatos.

Algumas palavras são trazidas pelas mãos de nativos de Portugal Angola ou Moçambique. Assim sendo, o insecto apresentado por Rui Lage vem acompanhado de um ferrão, que nos atrai o olhar enquanto passeia pelo tecto . No sobreiro (Jorge Reis-Sá), que pouco conhecemos no Brasil, brotam as lembranças de casas e de outras árvores, que sempre trarão em si as marcas do sobreiro esguio, metáfora da vida.

Seja na singular árvore que António José Teixeira ergue num lamento contra o progresso que as devasta, como no bosque desenhado por Daniel Maia-Pinto Rodrigues entre as névoas da fé do passado, a leitura do dicionário é uma viagem que encetamos através da língua em diferentes sotaques e dicções. Liberados de uma ordem alfabética que nos permita juntar fogo e neve (Guita Jr. e Amilcar Bettega), misturamos sensações e despertamos em nós o prazer de meditar sobre nosso idioma. Qual a palavra mais bela, a fundamental? Oblívio, para Alexei Bueno, morte para Armando Freitas Filho, vocábulos profundos como o vicio de Flávio Izhaki que nos consome vida e pensamento, termos de reflexão um espelho (Heloisa Seixas) que nos revela ou um silêncio (Ana Paula Tavares) que traduz ainda mais que seu rompimento.

O dicionário de palavras íntimas , como o definem os organizadores, não recua diante da intimidade. A mais contundente talvez seja buceta, preferida por Fernando Molina, seguida de porra, escolha de João Melo. Ambos desenvolvem suas palavras em contos que suavizam as opções e nos apiedam face aos personagens escravizados aos signos que os identificam.

De palavras vivemos, com palavras morremos & , lembram-nos os organizadores. Desmontando o significante, o poeta Henrique Rodrigues recria você, desfiando o pronome para lhe insuflar novos significados, enquanto Jorge Fernandes Silveira recompõe rio, numa interessante justaposição, evocadora da cidade partida, compósita, fragmentada. Paulo Henriques Britto tudo desfaz num peteleco, Glauco Mattoso, de sola, nos confronta com a sensação de eternidade que se grava na humilhação sofrida.

A surpresa de encontrar a palavra inventada por José Luís Peixoto calicatri , aberta em opções, oferecida como flor desabrochada, convive com a misteriosa palavra de Marcelino Freire, adiada até o final. Entre significantes suaves, duas mulheres rompem as expectativas e introduzem uma, Tatiana Salem Levy, o deserto na solidão que evoca, outra, Adriana Lisboa, a guerrilha que eclode no aprendizado de vida, sem estratégias, aproveitando o oco, o vazio, a falta de ordem.

O prazer de (re)conhecer as palavras, de encontrá-las em novas situações e de refletir sobre elas é estimulado pela bela edição, em capa dura, com ilustrações em que o significante se transforma em sua própria interpretação. Como vem acompanhado de ímãs com os termos, para que os leitores se aventurem a combinar e experimentar com cada um dos verbetes, é possível imaginar o condor de Mariana Ianelli saindo da noite onde exibe sua arte e angústia para a madrugada de Luís Cardoso, clara, esperançosa, grávida de vida.

Deixando que a sombra carreriana nos acompanhe como fugir ao destino? calçamos a sandália, com Ondjaki, para viajar, na companhia de Manuela Costa Ribeiro, por estradas interiores em que a poeira (Francisco José Viegas) que levantamos se defina em desenhos de lembranças eternizadas no agora. E, como nos ensina o verbete assinado por António Cícero, moderno, esse é o tempo em que vivemos, o eterno agora, que nos assusta e inquieta. Mas, o que fazer? Desidério Murcho nos responde: Onde há palavra, há verdade . O dicionário, amorosamente, nos desperta a consciência de que nosso idioma é uma espécie de casa (Fabrício Carpinejar). Existimos na língua que nos possui.

* Escritora