Livro-reportagem desmistifica a figura da cafetina
Alexandre Werneck, JB Online
RIO - Prostíbulo, bordel, lupanar, randevu. O estigma e a agressividade marcam os muitos nomes dados ao espaço em que se dão os negócios das prostitutas. Todas essas expressões são carregados de rótulo, todas são promovidas a xingamentos com que se desqualificam outros lugares. Talvez por isso, vendo de perto, nenhum nome soe tão adequado quanto o apelido, consagrado antanho, mas ainda hoje, de maneira um tanto moralista, casa de tolerância .
É de tolerância porque a sociedade as tolera. Como a prostituição é uma atividade normal, registrada em qualquer sociedade, é importante ter essas casas muito bem demarcadas como outsiders diz o jornalista Sérgio Maggio, responsável por um dos projetos de pesquisa mais corajosos e interessantes publicados recentemente no Brasil.
Conversas de cafetinas (Arquipélago, 160 páginas, R$ 31) nasceu como monografia de conclusão no curso de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Maggio queria fazer um livro-reportagem sobre as prostitutas, mas logo viu que havia um personagem mais interessante e menos conhecido, negligenciado: a administradora daqueles espaços.
É um personagem muito romanceado, folclorizado, sobretudo pela literatura de Jorge Amado e suas versões para a TV explica o autor, nascido em 1967 em Salvador e filho de um pai que frequentava a região do brega da cidade, e que o levava para ver de longe, talvez com o projeto de, como acontece com muitos adolescentes, iniciá-lo lá o que acabou não acontecendo. Mas o contato a distância fez com que ele se fascinasse por aquele universo.
Entretanto, se é uma conclusão fácil de enxergar a de que as sociedades permitem a existência dos espaços demarcados para as prostitutas, há um outro sentido no nome casa de tolerância que permite uma torção de significado, revelando uma interpretação ainda mais surpreendente e instigante:
Ao mesmo tempo, essas casas são de tolerância , porque dentro delas há regras morais para garantir a tolerância daquelas mulheres marginalizadas.
E esse talvez seja o grande dado sociológico/antropológico da pesquisa do comunicólogo: a cafetina é, antes de tudo, um ser moralista.
É uma forma de, ao mesmo tempo, manter o poder dessa figura, mas também de manter as relações entre as prostitutas, e entre estas e as cafetinas, sem conflito explica Maggio.
Introdução metodológica antes de prosseguir, então: a monografia de Maggio, defendida em 1997, queria criar o que ele chama de espaço de escuta . Na prática, queria fazer entrevistas etnográficas: ir aos bordéis, entrevistar a dona da casa, conhecer sua rotina, observar o cotidiano, ouvi-la, tudo anotar.
Ao final da pesquisa, ele havia falado com oito cafetinas baianas, de Salvador e do interior do estado. A todas, deu voz, história e sentido. No livro, cada uma ganha um capítulo.
E o interesse nessas mulheres se justifica não apenas por mostrar que as cafetinas não são todas a Maria Machadão, dona do Bataclan, bordel do romance Gabriela, de Jorge Amado, notabilizada sobretudo pelo personagem da telenovela de mesmo nome (na verdade, uma ampliação do personagem do romance, apenas um vulto para Jorge Amado): uma mulher forte, amiga dos poderosos e que, de um lado é uma grande mãe para as meninas e, de outro, resolve as coisas na ponta da faca . O olhar de Maggio se justifica como se explica em qualquer bom estudo de ciências sociais a escolha de um objeto: além de mais carne e osso do que clichês, as cafetinas de Maggio são mais complexas e revelam mais sobre o mundo que as cerca do que apenas sobre suas rotinas. CNPJ: Conversas... não é apenas uma reportagem no sentido de que não é apenas a abertura de portas para um mundo desconhecido do leitor. Trata-se de uma pesquisa de grande valor sociológico, por tocar em temas como gênero, poder e, sobretudo, como disse, moralidade.
As cafetinas são, sim, mães e guerreiras, mas com um grau de variação que as hipérboles da literatura nunca permitem. A começar pelo fato de que elas, em geral, não permitem ser chamadas de... cafetinas.
Elas se intitulam donas de casa explica Sérgio Maggio.
As ouvidas pelo pesquisador não aceitam o título justamente por uma prevenção moral. O termo, para elas, se refere mais ao cafetão, o homem, aquele que explora as mulheres. As cafetinas recusam a imagem da exploração. Daí poderem estabelecer o regramento moral de seus estabelecimentos. Há regras específicas sobre convivência, sobre as relações com os homens, sobre cuidados com a saúde.
Duas regras cruciais são nunca trabalhar com menores e sobre o uso de drogas explica Maggio, que se deparou com variáveis relações entre prostitutas e substâncias químicas, mas as viu em geral serem proibidas pelas patroas.
Nem todas as cafetinas são sócias capitalistas da relação cliente-prostituta, recebendo parte da féria de um programa. Algumas apenas alugam os quartos em que as meninas trabalham. Outras retiram seu lucro do serviço de botequim no qual as moças fazem negócio.
Mas, de maneira geral, elas estabelecem regras para essas relações: nunca fazer sexo sem camisinha, não permitem sair com clientes para programas fora dos estabelecimentos (o livro relata alguns casos de mulheres que foram atacadas e algumas que morreram ao fazerem isso), não perdoam roubos nem brigas entre as meninas.
Quando terminou sua pesquisa, Maggio preferiu não pensar em um livro. Achava que poderia ser algo oportunista. Mas ao se encontrar com Gina, uma das entrevistadas, que morreria em 2002, ouviu dela: Ninguém nunca falou comigo como você . Resultado:
Senti que eu tinha que retornar àquele material.
Foi apenas em 2004, depois de uma pós-graduação em Brasília, que lhe rendeu uma pesquisa sobre a relação entre prostituição e rede hoteleira na capital federal, que ele retornou de vez aos perfis.
Mas naquele momento, deu-lhes outro destino: escreveu a peça Cabaré das donzelas inocentes (que aparece na íntegra no livro), justamente o nome da casa de uma de suas entrevistadas, Andrea, da cidade de Catu, e cujos personagens são outras que falaram com ele: Cabeluda (de Cachoeira, interior baiano, que ostentava longos cabelos e muitos pelos pelo corpo), Minininha (que nunca foi prostituta e se diz grande mãe das meninas que agencia) e Saiana.
Pois é sem dúvida Saiana a personagem que mais fascinou o pesquisador na hora de escrever o livro o que aconteceu finalmente em 2008, depois do retorno aos perfis feitos para a monografia. A mulher do facão , a ex-garota de programa na Fontinha, tradicional zona de meretrício de Nazaré das Farinhas, interior baiano, virou lenda e dona de casa de tolerância. É dela a foto que ilustra a capa deste caderno. É uma espécie de personagem-síntese da cafetina que encontra no volume ainda a representação de Nini, que foi traída pelo único homem que amou na vida; Gina, que saiu de Brasília e acabou tendo um bordel diante da Baía de Todos os Santos; Juci, pernambucana que usou racionalmente a cafetinagem como caminho para deixar a prostituição; e Fátima (dona do Chalé Drinks, que herdou de uma cafetina que virou evangélica).
Mas a leitura deixa claro que os tempos da prostituição são outros.
Do que vi, esse modelo da casa está em esgotamento diz Maggio, reforçando a informação de que há um projeto de desmantelamento da zona de Salvador. Se uma fecha, não abre em outro lugar. As prostitutas estão indo todas para a rua.
Ele explica que a constituição de um espaço como o da casa de tolerância não é algo motivado apenas pelo dinheiro, mas também pela identificação com o desvio . Segundo ele, esse contato dá sentido a uma relação de maneira primordial. Segundo ele, as novas tecnologias estão acabando com os prostíbulos.
Sim, é possível que a relação com a cafetina ajude a humanizar a prostituta que é tão desumanizada, o que vem do estigma concorda com a sugestão, para ampliar o raciocínio rumo ao que acontece atualmente: E de fato com o novo modelo de prostíbulo, em vez de uma casa, elas têm uma home-page. Lá, elas aparecem sem rosto, e vale investigar o quanto isso retira a humanidade da relação.
Esse jogo de humanidade produzido pela rotulação, pela marginalização, faz com que ele retome a tese da cafetina como figura maternal.
No final das contas, a prostituta é uma filha da vida, e busca uma mãe da vida - acredita Maggio.
