Em livro, Adriana Calcanhotto conta crise sofrida na turnê portuguesa
Monique Cardoso, Jornal do Brasil
RIO - O dia-a-dia de uma viagem. No sentido figurado, aquele usado pelos usuários de substâncias que alteram o estado de consciência. O primeiro livro em prosa da cantora e compositora gaúcha Adriana Calcanhotto traz à tona detalhes de um surto sofrido durante a turnê de seu mais recente disco, Maré, em Portugal, no fim de maio. A crise de pânico foi provocada por uma combinação malsucedida de remédios prescritos para uma gripe forte que a fez vivenciar alucinações, passar noites sem dormir, ter medo de apagar as luzes, de morrer. De Saga lusa, livro que inaugura o catálogo da nascente editora Cobogó, não se deve esperar, porém, uma obra de grande vulto literário. É, antes de tudo, um relato salvador, expelido do desespero de quem, enquanto escreve, grita para ser lido.
Durante dias e noites em claro, a narrativa, como ela conta, foi o veículo de contato da autora-personagem consigo mesma e a consciência interna e externa de um processo psico-caótico. Por outro lado, a decisão de tornar tudo isso público expõe uma Adriana que os fãs não conhecem. Afinal, a cantora conseguiu a façanha de, até agora, preservar sua vida pessoal. A imagem bela, delicada e até um pouco frágil, reforçada pela pele pálida, pela voz suave, pelos modos sempre polidos e, sobretudo, pela discrição, é um retrato que ela, sem querer, rasga página a página.
No primeiro capítulo, Guerra e paz, ela conta como ficou doente. Depois, reconhece alucinações no que julgava serem pesadelos, se percebe em pânico, sente a língua enrolar, ouve vozes, vê cores piscando freneticamente e vivencia cenas absurdas, que a perseguem até a exaustão. Acordo de (mais) um pesadelo, em prantos, banhada de suor, sentindo um cheiro insuportável dentro do nariz, não de fora, nas narinas secas, arrepios pelo corpo. Vou pro espelho esperando ver um urso panda em trajes psicodélicos, e minhas pupilas são agora dois pires de tão dilatadas. Caralho, e agora? .
Citações de Vinicius a Camões
A experiência foi comentada, de leve, nos palcos brasileiros para justificar a entrada de Meu mundo e nada mais, de Guilherme Arantes, no repertório. Compartilhada inicialmente com uns poucos amigos pela internet, ainda durante o surto, a narrativa já nasceu livro. Compromisso assumido para tentar sair sã da ebulição química que tirou não só o sono, mas suas certezas sobre a vida. Não fosse o tom, confessional, Saga lusa daria uma ficção daquelas para se ler de uma vez só. Os capítulos curtos, ágeis, saciam e instigam o leitor a cada virada de página. Está ali, inteiro, o modo de falar da cantora, seu vocabulário de palavras bem escolhidas, típico dos que têm íntima relação com a língua.
A todo momento sua narrativa se preenche de citações musicais e literárias, que vão de Vinicius a Camões, passando, é claro, pelas próprias canções. Em 150 páginas, expressa estilo bem definido, sustentando unidade até o ponto final.
O diário, que descreve sensações internas experimentadas e situações insólitas vividas por apenas alguns dias, dá a impressão ao leitor de ouvir, com a voz dela, o desabafo da cantora como se ela estivesse sentada à sua frente, segurando o pires numa mão e a xícara de café na outra. Ao mesmo tempo em que compartilha com o mundo seu estado, talvez em busca de solidariedade, corre por fora o diário da turnê em si, as viagens.
Apesar de motivada por uma situação grave, a autora estreante dispensa o tom dramático: é descarada e naturalmente engraçada, o que tira um pouco do impacto que o leitor espera do livro-diário. Expressa um humor irônico e cria piadas internas, estabelecendo uma relação pessoal com cada interlocutor. Um exemplo é a descrição que faz de si mesma, desde o primeiro dia, ao desembarcar em Lisboa de olheiras após um vôo ruim: Urso panda disfarçado de cantora que vai ganhando acessórios.
Adriana exercita o papel de escritora ambiciosa, postulante a uma vaga na Academia Brasileira de Letras com apenas um livro, que espera lançar caso sobreviva, como repete a todo momento.
Parte integrante de um cenário psicológico recorrente, os quartos de hotel, a Adriana surtada abre aos fãs não só ouvintes, mas agora, também, leitores uma janela para a Adriana-ser-humano-comum, numa espécie de sessão de análise coletiva.
Revela-se viciada em internet, morre de raiva das companhias aéreas que desconsideram seu pedido de alimentação vegetariana e lembra o ritual para tomar a última Coca-Cola em 1988. Em nenhum momento, porém, ela (ironicamente) se deixa esquecer da posição de estrela. Se por um lado constata, sem lamentar, que seu surto é visto por muitos como coisa de artista , por outro assume sem pudor o papel de quem quer e precisa estar no centro de todas as atenções.
