Crítica - Deslembro: Resgate da memória entre a incerteza e a esperança
****- Muito bom
A trajetória de Joana (Jeanne Boudier) em “Deslembro”, escrito e dirigido por Flavia Castro é marcada por ambientes diversos. Os apartamentos dela e da avó na França e no Brasil, a praia e a estrada. As residências são acolhedoras, mas, numa delas, a janela dá para um enorme rochedo. Representação de um bloqueio do passado que aos poucos vai sendo rompido com o resgate de pedaços da memória. Joana morava em Paris com a família. Quando a Lei da Anistia é promulgada em 1979, a mãe e o companheiro dela, militantes políticos, decidem voltar ao Brasil, Joana, numa ação, com muitas simbologias, destrói seu passaporte e joga no vaso sanitário. Uma resistência a uma parte dela que será resgatada com o retorno ao país. Um passado doloroso de perda do pai e da identidade que ela pouco se lembra. No Rio de Janeiro, sua cidade natal e onde o pai desapareceu nos porões da ditadura, Joana começa a juntar os fragmentos da memória para entender sua própria história e de sua família.
A tendência da adolescência é o olhar para o futuro, mas Flavia Castro exibe a curta vivência de uma adolescente que há pouco saiu da infância para unir temas como exílio, fuga, luto e retorno que fizeram parte do passado da própria diretora (o pai dela também militante e exilado nos anos 70). No filme, Joana busca na relação com a avó (Eliane Giardini emociona) redescobrir esse pai, ao mesmo tempo em que está em conflito com a mãe, que volta ao país para um trabalho convencional, e o padrasto, ainda na militância e distante do filho pequeno que carece do colo do pai.
Aos poucos, a jovem encontra na praia suas raízes cariocas e o amor de um “menino do Rio”. A praia, um ambiente amplo, contrário ao limite dos apartamentos. Ela, meio brasileira e meio francesa, redescobre sua identidade e passa por um processo de amadurecimento. Na trilha sonora que pontua essas redescobertas estão “You don´t know me” e "Cajuína", de Caetano Veloso, “Walk on the wild side”, de Lou Reed, e “People are strange”, do The Doors. E entre as inspirações literárias, “Educação sentimental”, de Gustave Flaubert, “Rayuela”, de Julio Cortázar, e o poema “Deslembro incertamente”, de Fernando Pessoa. O filme, vencedor do prêmio Fipresci, da crítica internacional no Festival do Rio 2018, focaliza numa visão íntima, pessoas que viveram e sofreram as marcas dolorosas do regime repressor e, por fim, no ambiente da estrada aponta o caminho da jovem Joana, entre a incerteza e a esperança.
