(Sempre) é tempo de Glauber
Canal Brasil exibe, de amanhã a quinta, longas mais significativos da obra de um dos ícones do Cinema Novo
Um dos maiores nomes do cinema brasileiro de todos os tempos, Glauber Rocha (1939/1981) completaria 80 anos na próxima quinta-feira. Para homenagear o cineasta, que é um dos idealizadores do Cinema Novo, o Canal Brasil exibe, de amanhã a quinta, sempre às 17h, três obras de suas mais significativas obras: "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964), "Terra em Transe" (1967) e "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro" (1969). Além da programação regular, os três longas estarão disponíveis nas plataformas de Video on Demand das operadoras acompanhadas por "A Idade da Terra" (1980), "Barravento" (1962) e "Pátio" (1959). Em outros países, um realizador com a profundidade de Glauber estaria recebendo incontáveis deferências ao longo deste ano. Ainda há tempo.
Baiano de Vitória da Conquista, Glauber é a maior referência do movimento do Cinema Novo, o sopro vanguardista que renovou a cinematografia brasileira, na década de 1960. Com suas imagens, foi o poeta de uma estrutura narrativa não linear que, para ele, era mais coerente com o processo civilizatório brasileiro. Assumidamente terceiro mundista, o cineasta era um ferrenho crítico dos formatos difundidos por Hollywood. O cinema americano, denunciava, era colonizador e alienante. Um dos analistas que melhor decifraram a dislexia moral brasileira, Glauber cozinhou John Ford com Euclides da Cunha, sob pitadas de Mario Faustino, num caldeirão poético de fazer moquecas semióticas.
Criou com isso um western particularíssimo, entre a rapsódia e a denúncia política. Um western com sabor de exu que sintetiza os desacertos da opressão. Nunca antes dele... nem depois..., em sua soma de Mario Peixoto com No Tempo das Diligências, o cinema nacional criou imagens tão potentes na representação daa feridas narcísicas do Brasil.
Ele é o motor do tropicalismo que encheu de confete e Jimmy Hendrix o cinema do desbunde (de Sganzerla e Bressane) e o catalisador da vertente onírica de nosso audiovisual moderno, preparando sua musculatura para a ginástica do realismo mágico. Laureado em Cannes por longas e curtas, Glauber carnalizou o apogeu do carnaval crítico de nossas narrativas de combate ao imperialismo. "Você deve se dirigir ao estrangeiro como colonizador e não como colonizado, pra que os Severinos sejam mais fortes do que o Super-Homem dos americanos", repetia ele.
Polemista por natureza, destacou-se não apenas pela originalidade de sua filmografia, impregnada de brasilidade, como por suas bombásticas declarações à imprensa mesmo durante os piores anos da ditadura militar.
'Western com sabor de exu'
Para o crítico de cinema Rodrigo Fonseca, Glauber foi um dos analistas que melhor decifraram a dislexia moral brasileira. "Glauber cozinhou John Ford com Euclides da Cunha, sob pitadas de Mario Faustino, num caldeirão poético de fazer moquecas semióticas. Criou com isso um western particularíssimo, entre a rapsódia e a denúncia política", comenta Fonseca. "É um western com sabor de exu que sintetiza os desacertos da opressão", completa o crítico.
Nunca antes dele e nem depois, analisa o crítico, o cinema nacional criou imagens tão potentes na representação das "feridas narcísicas" do Brasil. "Glauber foi o motor do tropicalismo que encheu de confete e Jimmy Hendrix o cinema do desbunde (de Sganzerla e Bressane) e o catalisador da vertente onírica de nosso audiovisual moderno, preparando sua musculatura para a ginástica do realismo mágico"
Batizado na Igreja Presbiteriana e alfabetizado pela mãe, Glauber estudou num colégio católico. Costumava acompanhar o pai, um construtor de estradas, em muitas viagens pelo sertão baiano. Durante a adolescência, mudou-se para Salvador com a família. Cinéfilo, começou a escrever críticas de cinema. Sua carreira como cineasta teve origem com dois curtas: "O pátio" e "Uma cruz na praça" (1960). Em 1962, seu longa-metragem de estreia, "Barravento", foi premiado no Festival de Karlovy Vary, na antiga Tchecoslováquia. O filme é a história de um negro que retorna à aldeia de pescadores em que foi criado para tentar livrar seu povo do domínio da religião e de crenças antigas.
Paralelamente aos trabalhos como cineasta, produzia ensaios sobre a sétima arte, tais como os publicados em seu livro "Revisão crítica do cinema brasileiro" (1963) nos quais esboçava alguns princípios que viriam consagrar o Cinema Novo. Mas foi com "Deus e o diabo na terra do sol", premiado na Itália e no México, que Glauber obteve reconhecimento como um dos maiores representantes da nova escola. Em meio à seca do nordeste, o camponês Manuel (Geraldo Del Rey) mata o patrão escravocrata e foge acompanhado da mulher Rosa (Yoná Magalhães). Passa a vagar pelo sertão migrando do fanatismo religioso para o bando do cangaceiro Corisco (Othon Bastos).
Mesclando elementos no neorrealismo italiano com a linguagem da literatura de cordel, o filme mostra as alucinações e práticas aterradoras que a fome, a miséria e a ignorância podem inspirar num povo desesperado. Dois anos depois, ainda ganharia outro prêmio no Festival Internacional de Mar del Plata, na Argentina.
Mas o grande reconhecimento internacional de Glauber viria com "Terra em transe". Na fictícia Eldorado, o jornalista e poeta Paulo Martins (Jardel Filho) luta para tentar mudar a situação de miséria e injustiça que assola o país. As críticas à ditadura militar brasileira eram evidentes, o que levou o longa a ser proibido logo após seu lançamento por ser considerado subversivo e ofensivo à Igreja Católica. A produção recebeu prêmios nos festivais de Cannes e Havana.
O complexo personagem de Antônio das Mortes, de "Deus e o diabo na terra do sol" ressurge em "O dragão da maldade contra o santo guerreiro". O matador de cangaceiros volta à cidade de Jardim das Piranhas para matar o bando do jagunço Coraina (Lorival Paris), que diz ser a encarnação de Lampião. A partir desse duelo, Antônio toma consciência de que os verdadeiros inimigos do povo não são os cangaceiros, mas a estrutura latifundiária, e passa a combater o decrépito coronel, cuja morte nem purifica, nem traz a salvação para o sertão. Com este longa, Glauber voltou a ser premiado em Cannes, desta vez como melhor diretor.
Em 1970, dirigiu dois filmes fora do Brasil: "Der Leon hás sept cabezas", filmado no Zaire (hoje República Democrática do Congo); e "Cabezas cortadas", rodado na Espanha, e que só seria liberado para exibição no Brasil nove anos depois quando se iniciava o lento e gradual processo de abertura política.
Ainda fazem parte da filmografia glauberiana os curtas-metragens: "Maranhão e Amazonas, Amazonas!" (1966); "Câncer" (1972); "Brasil 68" (1974, inacabado); "História do Brasil (1974); "Claro" (1975) e, entre 1971 e 1974 realizou "Leiticia; Mossa no Marrocos", "Super Paloma" e "Viagem com Juliet Berto". Diirigiu um documentário sobre o pintor Di Cavalcanti, em 1977, e seu último trabalho como diretor foi o longa "Idade de Terra", em 1980.
