Adeus ao Kaiser das passarelas: Karl Lagerfeld

Prolífico e provocativo estilista reergueu a Chanel e era sintonizado com os novos tempos

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Bcapa-(FILES) In this file photo taken on October 1, 2013 German fashion designer Karl Lagerfeld for Chanel acknowleges the public at the end of his 2014 Spring/Summer ready-to-wear collection fashion show at the Grand Palais in Paris. - German fashion designer Karl Lagerfeld has died at the age of 85, it was announced on February 19, 2019. (Photo by Patrick KOVARIK / AFP)

PARIS - Astro inquestional da alta-costura, Karl Lagerfeld morreu ontem, aos 85 anos, no Hospital Americano em Neuilly, nos subúrbios de Paris, onde foi internado na emergência na noite de segunda-feira. A sua própria imagem representava muito bem a sua marca. Com o cabelo branco cuidadosamente penteado e preso em um rabo de cavalo, óculos escuros, camisas brancas, colarinhos altos, numerosos anéis, suas luvas e a verborragia, o estilista alemão, conhecido como o "Kaiser", tinha uma aparência perfeitamente reconhecível. Tão vaidoso como propenso às piadas, quando perdeu 42 quilos em 2002 afirmou que era para ser um "bom cabide" e entrar nas roupas que Hedi Slimane criava para a Dior.

Ontem, a maison Chanel informou, através de comunicado, que Virginie Viard, diretora do estúdio de design de moda da Chanel e braço direito de Karl Lagerfeld, assumirá a direção criativa da grife. "É para Virginie Viard, diretora do estúdio de criação de moda da Chanel e colaboradora mais próxima de Karl Lagerfeld por mais de 30 anos, que Alain Wertheimer (coproprietário da Chanel) confiou o cuidado de garantir a criação de coleções futuras, mantendo o legado de Gabrielle Chanel e Karl Lagerfeld vivo", afirma o documento.

Lagerfeld viu sua saúde se deteriorar consideravelmente nas últimas semanas, a ponto de não aparecer ao final da apresentação da coleção primavera-verão 2019 para saudar o público, algo que ele nunca deixou de fazer desde sua estreia na Chanel em janeiro de 1983. Ele dirigia três marcas (Chanel, Fendi e sua grife), mas seu nome estará para sempre ligado à Chanel, cujo códigos mudou constantemente, reinventando clássicos como os ternos de tweed e bolsas acolchoadas. Gabrielle Chanel "teria odiado", afirmou o "Kaiser" ("imperador" em alemão), conhecido por suas declarações provocativas que eram um misto de narcisismo e autodepreciação.

Sempre sintonizado com os novos tempos, ele organizou desfiles com encenações surpreendentes e espetaculares, em supermercados, galerias de arte ou ao ar livre, fazendo a festa nas redes sociais. Viciado em trabalho ("Nunca pensei em aposentadoria", dizia ele), combinava a criação das coleções com seu trabalho com fotografia.

O "Kaiser" tinha o talento para descobrir top models: a francesa Inès de la Fressange, que assinou um contrato exclusivo com a Chanel em 1983, assim como a alemã Claudia Schiffer, a britânica Cara Delevingne ou franco-americana Lily-Rose Depp. Ele ainda queria que elas fossem magérrimas, apesar das crescentes demandas por diversidade. "Ninguém quer ver mulheres gordas nas passarelas (...) São as mulheres gordas sentadas com sacos de batatas diante da televisão que dizem que as modelos magras são horríveis", afirmou à revista alemã Foco em 2009, que o fez ser denunciado por uma associação de defesa de pessoas com excesso de peso.

Sobre sua própria morte, também tinha, como em outros assuntos, uma opinião consolidada. Questionado pela revista "Number" se queria um funeral espetacular, afirmou: "Que horror, não haverá funeral". "Eu só quero desaparecer como os animais da floresta virgem", afirmou, em outra ocasião, em entrevista à France 3.

O presidente do grupo LVMH, Bernard Arnault, disse estar "profundamente entristecido com a morte de seu querido amigo": "Moda e cultura perdem uma grande inspiração. Ele ajudou a fazer de Paris a capital da moda do mundo e a Fendi, uma das casas italianas mais inovadoras", afirmou o diretor do grupo que possui a marca italiana, da qual Lagerfeld também era o diretor artístico. "Teu gênio tocou a vida de muitas pessoas, especialmente Gianni e eu. Nunca esqueceremos teu incrível talento e inspiração infinita, sempre aprendemos contigo", escreveu Donatella Versace no Istagram.

Intuição aguçada

Por trás da figura de língua afiada se escondia um homem intuitivo que sabia captar melhor que ninguém as necessidades de seu tempo. Como em 2004, quando desceu de seu pedestal para criar uma coleção para o grupo sueco de moda H&M, hoje algo completamente normal. Nascido em Hamburgo, Lagerfeld sempre manteve uma aura de mistério a respeito de sua data de nascimento. Vários jornais alemães, com base em documentos oficiais, afirmam que ele nasceu em 10 de setembro de 1933. Ele disse que nasceu em 1935, durante uma entrevista à revista francesa "Paris-Match", em 2013, na qual afirmou que sua mãe "mudou a data".

Teve uma infância feliz, mas entediante, em uma zona rural remota da Alemanha durante o nazismo, entre um pai industrial e que viajava muito e uma mãe com personalidade forte, grande leitora, mas pouco afetuosa, que no entanto provocou sua paixão pela moda. O pequeno Karl desenhava vestidos enquanto sonhava com Paris, onde chegou na adolescência.

Em 1954, ele ganhou um concurso organizado pela Sociedade Internacional da Lã, empatado com Yves Saint Laurent, com quem ele simpatizou, antes de se tornarem grandes inimigos. Foi contratado pelo estilista Pierre Balmain e passou três anos na maison antes de se tornar diretor artístico de Jean Patou. No início dos anos 1960 começou uma carreira de estilista independente, trabalhando para várias marcas. "Sou o primeiro que fez um nome com um nome que não era o seu. Devo ter mentalidade de mercenário", dizia.

De 1963 a 1984, trabalhou para a marca parisiense Chloé. Desde 1965, também criava para a italiana Fendi, que entretanto passou a integrar o grupo de luxo francês LVMH. Para o grande público, o nome de Lagerfeld permanece indissociável da Chanel. Quando chegou em 1983, a empresa era considerada um pouco antiquada. Com a sua liderança voltou a ser jovem e desejável. Durante mais de 30 anos, ele reinventou a marca a cada temporada, brincando com seus códigos.

Sintonizado com os novos tempos, organizou desfiles com encenações surpreendentes e espetaculares, em supermercados, galerias de arte ou na rua, sempre obtendo muito sucesso nas redes sociais. Sua própria marca, lançada em 1984, teve diversos problemas antes de virar um sucesso há alguns anos. Lagerfeld também estabeleceu colaborações esporádicas com marcas como Wolford, Diesel, Volkswagen, Coca-Cola, entre outras.

Amante dos livros

Em sua vida privada, um homem ocupou um lugar central no coração do estilista: Jacques de Bascher, que também teve um relacionamento com Yves Saint Laurent. Sua morte - vítima de Aids em 1989 - abalou Lagerfeld, sempre muito reservado sobre esta questão. Viciado em trabalho ("Nunca pensei em aposentadoria", dizia ele), combinava a criação das coleções com seu trabalho com fotografia. Era ele quem assinava as campanhas da Chanel.

Os livros também ocupavam um espaço importante em sua vida. Ele tinha entre 250 mil e 350 mil volumes, de acordo com estimativas da imprensa, espalhados por suas diversas residências. O menino obrigado pela mãe a aprender a cada dia uma página do dicionário se tornou um apaixonado pela literatura do século XVIII e início do XX.

Suas duas paixões se encontraram em 1999, quando fundou a própria editora e livraria "7L", que edita obras de arquitetura, fotografia ou de seus autores preferidos. Fã de arte, vendeu em leilões em 2000 e 2003 duas de suas coleções do século XVIII (3,54 milhões de euros, 4 milhões de dólares) e de arte decorativa (1,1 milhão de euros, 1,2 milhão de dólares).

No documentário "Lagerfeld confidential" (2007) , Rodolphe Marconi se propõe a desvendar quem era a "Pessoa atrás dos óculos", com seu consentimento, admiração e discrição. Pela primeira vez, o estilista concordou em compartilhar seu cotidiano e confiou em um diretor: a construção de uma peça, as entrevistas, seu trabalho de fotografia, a pintura, sua biblioteca de livros de arte, Chanel, Fendi, a Galeria Lagerfeld, as mais belas mulheres do mundos, as atrizes e as estrelas do mundo inteiro.

As frases mais mordazes de Karl Lagerfeld

Sobre a beleza

"Estou cercado de gente jovem e bonita. Tenho horror de olhar a feiura".

"Ninguém quer ver mulheres rechonchudas nas passarelas (...) São as mulheres gordas sentadas com um pacote de batatas diante da TV que dizem que as modelos magras é algo horrível".

"Se fosse uma mulher russa, seria lésbica. Os homens russos não são muito bonitos".

Sobre a moda

"Se me perguntar o que gostaria de ter inventado na moda, eu diria uma camisa branca. A camisa é a base de tudo. Todo o resto vem depois".

"Todo mundo deveria dormir vestido como se tivesse um compromisso à espera na porta".

"As calças de moletom são um sinal de derrota, de que você perdeu o controle de sua vida".

Sobre a criatividade

"Sofro uma espécie de Alzheimer com meu próprio trabalho, o que é muito positivo. É preciso esquecer tudo e começar de novo".

Sobre sua personalidade

"Sou uma espécie de ninfomaníaco da moda que nunca alcança o orgasmo".

Sobre a sua sexualidade

"Quando perguntei a minha mãe o que era a homossexualidade, ela respondeu: 'É como uma cor de cabelo'. Ele tinha razão, não é nada".

Sobre seus óculos escuros

"São minha burca. Sou um pouco míope e os míopes, quando tiram os óculos, têm um ar de gatinho lindo que deseja ser adotado".

Sobre suas luvas

"Uso luvas há pelo menos 15 anos para evitar manchas. E também para não ter que apertar mãos úmidas como esponjas. Infelizmente, acontece com frequência e é asqueroso".

Sobre Coco Chanel

"Não concordaria comigo (...) Teria detestado meu trabalho". "No final, odiava minissaias. E, se você começa a ficar contra a moda de uma época, é você que tem um problema".

Sobre os intelectuais

"Odeio as conversas intelectuais com intelectuais, porque só me importo com a minha opinião".

Sobre o amor

"O único amor no qual acredito é no de uma mãe por seus filhos".

Moda perde uma de suas principais referências

Iesa Rodrigues*

Especial para o JB

Karl Lagerfeld sai de cena e a moda perde um dos seus grandes criadores. Não só a moda, mas todas as atividades que ele desenvolveu com talento: fotografia, música, edição de revistas, vídeos. O principal era a direção de estilo da Chanel, uma das grifes mais difíceis de trabalhar, por ser uma empresa familiar, a única que ainda não caiu nos lotes de marcas pertencentes a grupos empresariais como a LVMH ou ao Kering.

Desde que assumiu a Chanel em 1983, Lagerfeld transformou os tailleurs de tweed e os vestidos pretos em peças ícones, inseridas em desfiles espetaculares. Primeiro, nas salas do subsolo do Museu do Louvre, que logo se tornaram pequenas para os mais de mil convites distribuídos entre imprensa e compradores. Transferida para o salão do Grand Palais, nos Champs Elysées, a coleção virou protagonista de histórias que iam de trilhos sobre pedras vulcânicas, lembrando a Islândia, ao fundo do mar, com conchas e estrelas do mar gigantes.

Havia sempre a ligação com as tradições ditadas por Gabrielle Chanel: um carrossel com os símbolos da marca no lugar dos cavalinhos, um prédio replicando a loja matriz, jardins e um dos cenários recentes mais impactantes, uma praia, com direito a ondas de verdade _ Gabrielle frequentava as praias francesas, Cannes e Deauville viam a sua elegância de camiseta listrada e calças compridas.

Trabalhador incansável, mantinha uma grande mesa quadrada: cada lado da mesa servia de base para as ideias de marcas diferentes e uma quarta era livre, para outros projetos. Nas outras três, ficavam as referências e croquis de Chanel, da italiana Fendi, da KL, sua marca própria e eventualmente para o catálogo alemão Quelle. A origem de elite alemã, frequentador também de praias chic, como Sylt, os estudos de moda em Paris, onde empatou com Yves Saint Laurent em um prêmio para novos talentos na década de 1950, a personalidade considerada extravagante porque se abanava com leques e usava rabo-de-cavalo, fizeram de Lagerfeld um gênio simpático, que cumprimentava os convidados em inglês, francês ou alemão, circulava em Saint Germain, almoçava no Café de Flore e sempre se encantou com a moda. Tanto, que enfrentou um regime drástico para perder a barriga e vestir as roupas assinadas por Hedi Slimane para a Dior Masculina.

E agora, Paris?

Vamos combinar que, sem Karl Lagerfeld, John Galliano (expulso da Dior em 2011) e Marc Jacobs (saído da Louis Vuitton em 2013) as semanas de desfiles de Paris perdem muito da atração. Restam o talento de Maria Grazia Chiuri, que brlha na Dior, Piorpaolo Piccioli na Valentino. Os japoneses, como Comme des Garçons e Yohji Yamamoto, ou os também orientais, como Junia Watanabe, atuam muito no lado conceitual e ainda apresentam suas propostas em circuito fechado. Os ingleses, idem: Stella McCartney, além de coleções irregulares, parece se preocupar muito em proteger o pai, Paul McCartney, do assédio de muitos convidados e faz desfiles no foyer da Opèra Garnier.

Givenchy, Saint Laurent, Balmain, Balenciaga, Nina Ricci, Louis Vuitton e outras grifes tradicionais famosas vivem trocando de designers, em busca do sucesso comercial e da notoriedade. Tanto, que entre as editoras internacionais que ficam em lugares próximos nos desfiles, antes do apagar das luzes da plateia, rola sempre a aposta de quem sabe quem está à frente destas marcas.

Esperemos que Virginie Viard, diretora de criação da Chanel, que em janeiro apareceu no final do último desfile de Alta Costura, no lugar do mestre, tenha força e ideias para manter os conceitos espetaculares que animam a semana de moda parisiense. Ou seremos levadas para Nova York, para aplaudir Tom Ford, Marc Jacobs e Ralph Lauren. Quem sabe, para Los Angeles, ver a dupla August Getty e Gigi Gorgeous exibir seus looks festivos, decotados, perfeitos para os tapetes vermelhos.

Vai fazer falta, o Lagerfeld.