Responsável pelo fenômeno 'Gomorra', Matteo Garrone volta às telas, dez anos depois de seu maior sucesso, com 'Dogman'
É grande a dívida que o cinema italiano contemporâneo tem com Matteo Garrone, diretor e artista plástico romano, de 50 anos, que reinventou a forma de representar a violência nas telas da pátria de Fellini, primeiro com "Gomorra" (2008) e, dez anos depois, com "Dogman", que estreia nesta quinta-feira no Brasil.
A aposta constante em indivíduos economicamente invisíveis, que se empoderam ao investir na brutalidade e no poder paralelo do crime, criando códigos de honra particulares, fez dele uma alternativa europeia na abordagem da máfia, com um olhar mais rústico que o celebrizado em Hollywood pelos gângsters de Coppola, Scorsese ou De Palma.
Não por acaso, no sábado, ao ganhar o prêmio de melhor roteiro no 69º Festival de Berlim, por "Piranhas - La paranza dei bambini", o cineasta Claudio Giovannesi citou o quão importante "Gomorra" foi para seu entendimento das transformações sociais da periferia da Itália. Um país que renasce no longa-metragem mais recente de Garrone como uma nação na qual a lealdade é um artigo raro, de valor inestimável e, por vezes, regado a sangue.
"Cães são símbolos da fidelidade, de uma devoção cega de amor. Um tratador de cães é o meu protagonista em 'Dogman', por isso... por ser alguém que sabe o quanto vale ter amigos fiéis", disse Garrone ao JORNAL DO BRASIL no Festival de Cannes, em maio, onde seu longa foi coroado com pencas de elogios e com o prêmio de melhor ator, dado a Marcello Fonte.
Coube a Fonte viver o bondoso atendente de uma petshop, num lugarejo pobre, onde a máfia local é um núcleo de bandidos de quinta. Mas uma sucessão de erros cometidos por um amigo (ou quase) a quem ele dedicou todo seu afeto arrasta este tratador de animais para os trilhos da vingança. "Saí de um projeto grande, 'O conto dos contos', e tenho os planos de filmar a história de 'Pinóquio', o que também demanda uma produção de fôlego. São experiências que desgastam. Por isso, havia o desejo de fazer um pequeno filme, com foco no cotidiano, nas miudezas da vida. Percebi que existem limites morais que não podem ser transpostos: e a confiança é um, dos mais importantes", diz Garrone.
Sucesso de bilheteria na Itália (faturou 560 mil só em seus três primeiros dias em cartaz em Roma), coroado com 22 láureas internacionais, "Dogman" foi descrito como um faroeste sem pistolas dos tempos atuais: tem cachorros bravos em lugar de chumbo quente. "A associação com o western vem da moral: de certos padrões de conduta que orientam a vida em uma sociedade onde a lei parece esquecida", disse o cineasta, revelado em 1996, com "Terra di mezzo", quando já era consagrado como pintor. "Todo o conceito de realismo do cinema moderno, do neorrealismo ao cinema político dos anos 1960, passa por uma junção entre o fotográfico e o teatral. Numa narrativa clássica, eu usaria a pintura de Goya como referência para esse equilíbrio de registros. Venho das artes plásticas. É mais fácil para minha representação de mundo usar a tradição pictórica europeia de grandes quadros do que me reportar ao próprio cinema. Mas em "Dogma", a secura do real é ainda maior"
Filmado em Villaggio Coppola, com base em fatos reais, "Dogman" foi esboçado há uns 13 anos, sob o título de "O amigo do homem", tendo em mente o ator Roberto Benigni (de "A vida é bela") como protagonista. É com ele que Garrone faz "Pinóquio" agora. Mas a escolha para viver Marcello envolveu uma figura de largo sorriso e baixa estatura. Também cineasta, Marcello Fonte, que ganhou também o European Film Awards (o Oscar europeu), faz de seu personagem um cordeirinho encantado pela força bruta do antigo companheiro de infância, o agressivo Simoncino (Edoarso Pesce), um viciado grandalhão.
Sem caráter algum, Simoncino arrasta Marcello para as mais variadas confusões, inclusive assaltos. Covarde, Marcello tem medo da força dele. Porém, mais do que medo, ele tem uma lealdade... canina ao sujeito. Chega a ir preso para salvá-lo. Mas, uma hora a confiança dele na amizade de Simoncino é rompida. É hora de dar o troco...
"Se você pensar que um diretor como Pasolini começou a carreira nos longas fazendo filmes realistas como 'Desajuste social' e passou para mitologias ao adaptar a 'Bíblia' em 'Evangelho segundo São Mateus' e ao filmar 'As 1001 noites', vai perceber que este trânsito entre registros narrativos não é uma exclusividade entre os diretores italianos. As contradições nacionais nos levam a essa passagem. Isso aconteceu também com Mario Bava, outro mestre, aliás, um mestre nem sempre muito reconhecido, que transitava pela fantasia em seus thrillers. O grande Francesco Rosi fez o mesmo. Esse tráfego que faço agora, para as periferias, é parte do percurso que venho fazendo nas artes desde os tempos em que era pintor. Um dos meus primeiros filmes, 'O embalsamador', já carregava essa marca, essa mistura entre sonho e realidade. A questão é que, como 'Gomorra' e 'Reality', 'Dogman' nasce de fatos reais. Seu DNA vem de situações que aconteceram. Por isso, pediam uma abordagem realista, ao extremo. Cada viagem, seja por uma época, seja por um tema, é um teste no qual eu tento aprender ferramentas de outros gêneros. Já "Dogman" me abriu a porta do intimismo.
Ao lado de Paolo Sorrentino, que acaba de filmar a vida do ex-primeiro ministro e empresário Silvio Berlusconi ("Loro", aqui "Silvio e os outros") e de Luca Guadagnino ("Um sonho de amor"), Garrone faz parte de uma geração de realizadores que, na segunda metade dos anos 2000, abriu novas perspectivas para o cinema italiano, a partir de um olhar autoral que aborda as crises do país sob um prisma existencial, com muito arrojo plástico no trato com a imagem.
"A tradição dos gigantes do neorrealismo, como Fellini e Rossellini, e de outros grandes mestres que vieram depois dele, existe para nos lembrar que não podemos ficar presos a nada, nem a ela. Todos os grandes diretores do neorrealismo deixaram para nós, cinéfilos, como um legado um patrimônio imagético de valor inestimável. Mas a preciosidade desse nosso passado não pode bloquear a criatividade do presente e tampouco travar os planos para o futuro, principalmente entre os jovens", disse Garrone ao B. "Precisamos de novas vozes".
*Roteirista e crítico de cinema
