Às vésperas de completar 84 anos, Renato Aragão completa um roteiro novo, cheio de gás para fazer o Brasil rir nas telas

Por Rodrigo Fonseca *

Renato Aragão

É Natal e, neste dia, há um costume generalizado de se pesar na balança tudo o que fizemos no ano que acaba daqui a alguns dias : é por isso que Antonio Renato Aragão, ao avaliar o que 2018 representou em sua vida, folheia, todo orgulhoso, um roteiro para um filme novo. Foi escrito pelo eterno trapalhão em duo com seu filho Duda (Renato Jr). É um enredo que remonta às fábulas das “1.001 noites”. É o 51º de uma carreira cinematográfica que o cearense de Sobral - o oitavo filho da professora Dinorá e do escritor (que foi representante de laboratório e sócio de uma fábrica de louças) Paulo Aragão - iniciou em 1965. Carreira esta capaz de impressionar qualquer astro de Hollywood com tantos ingressos vendidos: 30 milhões de pagantes, e isso só contabilizando as cifras oficiais.

“Eu me senti artista no dia em que vi num jornal do Ceará, em 1973, a manchete ‘Didi fechou a rua’, referente à multidão de gente que dobrava o quarteirão, em frente ao Cine São Luiz, lá em Fortaleza, para ver ‘Aladim e a lâmpada maravilhosa’, com meu nome na fachada”, lembra, todo pimpão, enquanto bota comida pra seus gatos. “Aqui em casa, sou porteiro deles. Miam e eu abro porta”.

Somando os espectadores que pagaram ingresso em salas de cinemas do interior, em um tempo em que não havia aferição eletrônica dos bilhetes vendidos, a marca de público dos Trapalhões (Dedé, Mussum, Zacarias e o alter ego de Renato, Didi) na telona dobraria, isso se for contabilizado o fato de que o grupo lançou dois longas-metragens por ano - um nas férias de julho, outro no recesso escolar de dezembro - entre 1977 e 1990. “Os Trapalhões nas minas do Rei Salomão” (1977) é o mais rentável deles, com 5.786.226 espectadores. Outros quatro longas-metragens do quarteto venderam cerca de cinco milhões de ingressos. O que menos vendeu bilhetes, “A árvore da juventude”, arranhou 1,2 milhão de pagantes, em 1991 – e isso foi um feito para uma época de vacas magras do nosso cinema.

“Todo Natal tinha filme dos Trapalhões e, em meio às brincadeiras, a gente sempre levava uma mensagem de solidariedade, que é uma palavra essencial a esta época do ano. Mas eu sempre me pergunto por que o Papai Noel dos brasileiros precisa ser aquele da Lapônia, branco, bem alimentado. Por que o Papai Noel do povo brasileiro não pode ser um nordestino que leva esperança às crianças do nosso país?”, questiona o trapalhão, que completa 84 anos no dia 13 de janeiro, cheio de gás, vitaminado por um encontro que acaba de ter, no Ceará, com colegas de sua turma de Direito, onde se bacharelou com a monografia “A participação do empregado no lucro da empresa”: “Reencontrei amigos que hoje moram espalhadas pelo Brasil. Tem juiz, tem grandes juristas... e tem eu, um palhaço”.

Tortas na cara, dancinhas exóticas e bordões do tipo “ô, psit!” e “Cuma?” é apenas parte dos feitos do palhaço de Sobral no picadeiro da vida: poucos percebem, mas as histórias com as quais ele fez (e fará) o Brasil rir têm o dedo dele no argumento e no roteiro. As lições de Português que aprendeu nos bancos da Faculdade de Direito, na qual se formou em 1961, em paralelo a seu trabalho no Banco do Nordeste, alimentaram sua verve de escritor e liberou sua imaginação. Ele já adaptou romances de Charles Dickens, já revisitou fábulas de La Fontaine e agora vai às “1.001 noites” no atual projeto. Porém, mais detalhes acerca da nova aventura de Didi Mocó Sonrisépio Colesterol Novalgino Mufumbo, ele não conta.

O segredo e a persistência são a alma de uma trajetória artística que este cearense de Sobral vem construindo desde o dia 30 de novembro de 1960, quando, em paralelo aos estudos universitários e o trabalho de bancário, entrou no ar, ao vivo, na TV Ceará, à frente do humorístico “Vídeo alegre”, inspirado por seu ídolo, Oscarito (1906-1970). “Um dia, quando estava iniciando minha profissão na TV, fui ver um show do Oscarito num teatro e, depois, fui ao camarim pra agradecê-lo por tudo o que o cinema dele fez pelo Brasil. Virei e disse, tremendo da cabeça aos pés de emoção: ‘É por sua causa que eu estou aqui’. Não acreditei quando ele disse que já tinha me visto na TV. E ele disse: ‘Segue em frente’. Aquilo foi uma sentença”, disse Aragão, que desde 1991 carrega o título de embaixador do Unicef, numa luta pelo bem-estar das crianças no Brasil e no mundo. “Faço rir na TV, mas este assunto das crianças é sério. E se tiver que deixar um recado pro novo líder político que vai governar o Brasil, eu diria que a solução desse país são três coisas: educação, educação e educação. Quando se educa bem uma criança hoje, haverá um adulto a menos a ser repreendido no futuro”.

Desde que Fortaleza viu Aragão virar uma celebridade televisiva, as crianças sempre tiveram encanto por suas peripécias. Logo que a TV Ceará abriu concurso para redatores, Aragão inscreveu-se, correndo atrás da sorte e conseguiu alcançá-la. Não só passou a escrever esquetes: teve que estrelar as loucuras que escrevia. “Minha sorte era que não havia tantos televisores em Fortaleza porque, se houvesse, a minha situação teria sido ainda mais difícil: logo que eu apareci, as pessoas me olhavam na rua e diziam: ‘Ó lá o doidão da televisão’. Eu não conseguia nem mais andar de ônibus. Tive que comprar uma Vespa para poder andar pelas ruas. Imagina isso numa rotina de banco, como eu tinha, cuidando do departamento rural. Mas não chegou a me atrapalhar lá. Quando vim para o Rio tentar a sorte na TV daqui, até transferi minha matrícula, mas logo a televisão tomou conta do meu tempo”, diz Aragão, que estrelou “Os adoráveis trapalhões” (com Ivon Cury, Ted Boy Marino e Wanderley Cardoso), “Os Insociáveis” e, por fim, “Os Trapalhões”, que começou em 1977 e está hoje na grande do streaming Globoplay.

“Tenho muita saudade da união que Dedé, Zaca, Mussum e eu tínhamos. Vivíamos juntos, gravando na Globo e viajando o Brasil fazendo shows. Fizemos um humor descontraído, vivo. Dedé é um dos melhores atores com quem já trabalhei, carregando a energia circense em si. Quando fazíamos ‘Os insociáveis’, achei que precisávamos de mais um parceiro e vi o Mussum tocando com os Originais de Samba. Senti que o carisma dele era perfeito pra nós. E foi. Já o Zacarias eu vi no teatro, fazendo um mordomo engraçado. Vi ali um menininho que não queria crescer. O grupo estava pronto”.

Até hoje, comenta-se da separação do grupo, ocorrida em 1983, mas Aragão exclui de sua história hipóteses de brigas. “Ali não houve quebra de relacionamento, foi apenas um desejo deles de terem uma empresa própria, a DeMuZa. A gente se separou por um tempo, para que eles fizessem projetos próprios. Eu fiz os meus. Mas havia amizade e afinidades. A gente logo se reaproximou”, alegra-se Aragão, que é pai de Paulo, Ricardo, Renato Jr. (o já citado Duda), Juliana e Lívian, sua parceira em vários filmes.

O sucesso domincal de “Os Trapalhões”, na Globo foi o apogeu de um caminho que começou na TV Ceará. Ali teve início uma usina de ideias imortalizadas em forma de filmes, em improvisos em shows pelo Brasil e em esquetes célebres como o quadro de “Os Trapalhões” no qual ele imita Maria Bethânia, ao som de “Teresinha”, contracenando consigo mesmo.

“No YouTube, esse negócio já foi visto tantas vezes, tantas vezes, que a imagem já deve ter perdido a cor, de tanto que foi gasta. Ouvi a música do Chico Buarque no rádio, enquanto eu ia pra Globo gravar, pedi pra comprarem o disco e improvisei aquilo... e tá aí até hoje. As pessoas gostam, têm saudade e me demonstram um carinho que eu não tenho condição de retribuir. Se eu vou ao aeroporto pra viajar, a quantidade de gente que me cerca, cheia de amor, é tão grande que eu fico preocupado de não conseguir atender aos pedidos de todo mundo. É gente pedindo foto, pedindo autógrafo... é lindo de ver e mais lindo ainda de viver. Eu não sei se mereço esse amor todo, mas fico feliz de que ele exista. Não tem essa coisa que falam por aí de que eu não gosto de ser chamado de Didi, que tenho que ser ‘Doutor Renato’. Fico chocado quando ouço isso, pois é só veneno, maldade. Ser chamado de Didi é uma honra. Vê lá se eu não vou gostar de ser chamado pelo nome do anjo que me deu tudo o que eu tenho: o Didi é um amigo, é o eterno menino que trago dentro de mim”, diz Aragão, preocupado com a queda radical de público do cinema brasileiro no segundo semestre de 2018. “A gente precisa fazer uma corrente de fé e acreditar mais na qualidade do nosso cinema, que é enorme. Indiferença passa. A questão é a gente não desistir. Por isso eu não paro nunca de anotar minhas ideias”.

Há uma pilha de cadernetas lotadas de premissas para cenas ou filmes na estante no escritório de Aragão, próxima à sala onde ele delicia sua cinefilia revendo seus filmes preferidos. “Toda hora que passa ‘Bastardos inglórios’, do Tarantino, eu revejo. Aquele Christoph Waltz, que faz o nazistão poliglota, é danado. ‘Django livre’ e ‘Os oito odiados’ eu também adoro”, diz ele, que também não perde uma boa partida de futebol na TV, seja Eurocopa ou peladas nacionais.

Futebol já foi parte indispensável de suas atividades para manter o corpo em forma. Hoje, na casa dos oitenta, faz esteira, alimenta-se de verduras e carne branca (nada de vaca nem de porco), regando a dieta com frutas e muita vontade de viver e de criar. “É bom demais fazer as pessoas sorrirem assim como é importante mobilizar a caridade delas no ‘Criança esperança’. Já no cinema, eu tento levar uma mistura de riso com emoção ”, diz Aragão, incansável. “Tenho mais 50 filmes pra fazer. Aguarde e confie”.

*Roteirista, crítico de cinema e autor da biografia “Renato Aragão – Do Ceará para o coração do Brasil”