Um Brasil com a maconha legalizada

Fernando Meirelles se junta a filho para fazer série que se passa numa realidade paralela, onde a erva seria permitida no país

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Protagonista da série "Pico da Neblina", o ator Luis Navarro teve a candidatura ao papel "rejeitada", tudo para passar por um teste surpresa com a produção da série da HBO

Há poucos dias, a equipe de “Pico da Neblina”, nova produção nacional da HBO, com estreia prevista para o ano que vem, realizava filmagens no bairro da Vila Madalena, em São Paulo. Em uma das cenas, policiais abordavam, de forma violenta, o protagonista Biriba (Luís Navarro). A série, com produção da O2 e direção geral de pai e filho, Fernando e Quico Meirelles, se passa numa realidade paralela em que a maconha foi legalizada no Brasil. A questão, porém, de acordo com os diretores, é uma alegoria para falar de temas atuais e reais do País. “É o mundo contemporâneo, mas numa realidade paralela”, diz Quico, ao final do dia de gravações em São Paulo.

“Pico da Neblina” segue Biriba, um ex-traficante da periferia, na tentativa de se tornar bem sucedido de forma legal, agora que a maconha é um produto reconhecido pela lei. A luta do protagonista, porém, não será fácil, já que ele vai ter que lutar contra diversos preconceitos sobre sua origem, além de enfrentar a concorrência de pessoas com bastante experiência no mundo dos negócios. “Apesar de ter essa premissa fora da realidade, tudo é sobre o Brasil atual, um jeito de tratar questões do real”, afirma Quico. “Nosso protagonista é um jovem negro, falamos muito sobre a questão do racismo na sociedade. Não só em relação à polícia, como nessa cena. Tentamos criar um retrato bastante fiel”, completa.

Ponto de vista da exclusão

Para Fernando Meirelles, a série assume o ponto de vista de quem convive com a exclusão, seja velada ou explícita. “Este tema da exclusão está muito presente”, diz. “Ele (Biriba) é negro e filho de ex-presidiário, apesar de muito competente e sério precisa se esforçar em dobro para fugir do estigma”.

O diretor faz questionamentos. “Vender um baseado é crime para um personagem negro, enquanto tráfico de influência ou suborno de fiscais faz parte do negócio para o empresário branco. Como romper as barreiras sociais que existem no Brasil?”, questiona. A primeira temporada, afirma, foi feita por “playboys como eu”. Mas, numa eventual segunda, ele pretende lutar para mudar isso.

Para ajudá-los a contar uma história de periferia, Fernando e Quico resolveram trabalhar com novas caras, atores vindos de áreas mais longe do Centro de São Paulo. “A premissa da série era ter o maior frescor possível em tudo, em termos de linguagem, comportamento de câmera, narrativa e as caras que a gente vai ver, que são uma peça fundamental nisso”, explica Quico.

A produtora O2 realizou uma convocatória online e recebeu mais de 2.600 vídeos com testes de filmagens. Após uma longa seleção, 18 atores, todos pouco conhecidos, foram selecionados. O protagonista, Luís Navarro, foi um dos que mandou vídeos. No entanto, não foi chamado. Ao dar carona para o amigo Henrique Santana, escolhido nesta seleção para viver Salim, um co-protagonista da série, Navarro foi reconhecido pela produção e passou por um teste surpresa.

“Eu me incluo nessa porque, apesar de já ter feito alguns papéis, é o meu primeiro protagonista”, analisa o ator, que relembrou suas origens com Biriba. “Resgatei algumas gírias com o roteiro, coisas que meus amigos ou meus sobrinhos falam. Por ter convivido com muita gente diferente, perdi um pouco disso.”

Luís defende o seu personagem, a quem ele se refere como um “herói brasileiro”. “Ele tem suas ambições, mas não quer ficar milionário, quer usar o dinheiro para dar tranquilidade à família. Ele paga os estudos das sobrinhas, banca a casa”, relata. “Ele quer sair da vida do crime, que entrou por conta do pai. Tudo que acontece com ele na série é bem duro, ele pouco ri ao longo dos episódios.”

Fernando Meirelles elogia os atores escolhidos. “Acredito que o talento para atuar é como o para desenho ou talento musical. Tem gente que nasce com o software e, para eles, o trabalho é quase natural”, diz o cineasta. “Estamos muito felizes com as performances e a coisa anda ligeira e precisa como um reloginho - ou agora como um IPhone. Acho. Ninguém mais usa relógio”, brinca.

Apesar da série retratar um bairro periférico, a produção quis evitar repetir uma história sobre a violência nas favelas, como no próprio Cidade de Deus, de Meirelles. “Você entende que é um bairro distante do Centro, mas não chega a ser uma favela. Já vimos muitas vezes filme de policial subindo o morro com arma na mão, a gente não queria fazer isso”, explica Quico. “Biriba é um cara da classe C com dificuldade financeira. É uma outra realidade brasileira, distante desses universos que a gente já viu”.

Parceria familiar

Segundo Fernando, é o filho Quico quem comanda a série. “Estou dirigindo dois episódios e cumpro ordens. Como tenho viajado muito entre uma gravação e outra, trocamos bola pelo WhatsApp, com fotos do set todos os dia”, diz ele, de Londres. O cineasta elogia a parceria com o filho. “Trabalhar com ele é sempre um prazer, mas esta parceria nossa não é nova, ela existe desde que fui buscá-lo na maternidade e o trouxe para casa.”

A primeira temporada de “Pico da Neblina” terá dez episódios, com cerca de uma hora de duração. Além de dois episódios comandados por Meirelles, a série terá mais quatro dirigidos por Quico, três dirigidos por Luis Carone e um por Rodrigo Pesavento. Segundo Quico, os quatro se reuniram para criar uma unidade. “Fizemos muitas reuniões para criar a linguagem e o comportamento de câmera, a dramaturgia de cada cena e formular algumas séries, para garantir que os dez episódios tenham uma cara parecida.” As gravações se encerram em dezembro, para uma estreia em 2019.

***com Estadão Conteúdo