Petrobras Sinfônica apresenta arranjos de câmara para obras de Cartola

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Cartola fundou em 1928 a Estação Primeira de Mangueira, que teve como primeiro samba uma criação do mestre: "Chega de demanda"

A delicadeza reside em cada nota ou verso escrito por Cartola. O fundador da Mangueira escreveu seu nome na história da música brasileira com harmonias, melodias e letras de rara beleza. No ano em que se lembra os 110 anos de seu nascimento a Orquestra Petrobras Sinfônica (OPS) presta um tributo ao velho mestre do samba com um CD em que 11 canções significativas de sua discografia recebem arranjos de música de câmara. Dois concertos, a preços populares, hoje às 11h e 15h, na Cidade das Artes, celebram o feliz casamento entre a música erudita e popular, desfazendo qualquer interpretação de que o samba ou a MPB sejam ritmos inferiores, pois música e preconceito não cabem na mesma partitura.

Os arranjos do álbum são assinados pelo compositor e instrumentista Marcelo Caldi, que participou de outros dois projetos da orquestra envolvendo música popular: a orquestração sinfônica para os álbuns “Ventura”, dos Los Hermanos, e o “Thriller”, de Michael Jackson, este último um ícone da música pop. O repertório será apresentado por um octeto de sopros e percussão, e terá clássicos como “As rosas não falam”, “O mundo é um moinho”, “O sol nascerá” (Cartola / Elton Medeiros), “Alvorada” (Cartola / Carlos Cachaça / Hermínio Bello de Carvalho), além de “Minha”, “Peito vazio” (Cartola / Elton Medeiros), “Preciso me encontrar” (Candeia), “Que Sejas Bem Feliz”, “Disfarça e chora” (Cartola / Dalmo Castello), “Tive sim” e “Ensaboa”.

Sopros susbstituem melodias vocais

“As músicas foram selecionadas pela orquestra, que pediu que fossem mantidas no arranjo sua formas mais originais para que o público pudesse se identificar e cantar junto”, conta Caldi. “A partir dessa recomendação, me senti na obrigação de, ao ouvir as gravações originais, trazer os elementos do violão de sete cordas de um Dino Sete Cordas, que participa do disco. As frases de violão foram convertidas para uma partitura para a tuba. As melodias das vozes, canto e coral, foram adaptadas para o clarinete, flauta, trompete e o oboé, que são instrumentos mais agudos e próximos dos tons alcançados pela voz humana”, exemplifica.

Participaram da gravação os músicos Sammy Fuks (flauta), Francisco Gonçalves (oboé), Igor Carvalho (clarineta), Ariane Petri (fagote), Josué Soares (trompa), Nelson Oliveira (trompete), João Luiz Areias (trombone), Eliezer Rodrigues (tuba) e Pedro Moita (percussão).

A escolha dos instrumentos de sopro, acrescenta o músico remete a sonoridades tipicamente brasileiras como as flautas de pífanos, o choro. “A retirada do naipe de cordas trouxe um suingue”, diz Caldi, que se utiliza de recursos típicos do barroco como frases melódicas que repetem o andamento original alguns compassos depois. O músico afirma que precisou fazer algumas modificações em certos arranjos com certas particularidades. “Em canções encerradas com um fade out, foi preciso mudar o final, por exemplo”.

Questionado sobre o preconceito de parte do público em relação à música popular que seria uma “obra de menor relevância” se confrontada com a chamada música erudita, Caldi foi enfático. “Não existe essa fronteira que certas pessoas insistem em criar. Música é boa é música boa, independente de como foi feita, do seu tempo de duração ou de quantos instrumentos são usados para executá-la. No caso do Cartola, estamos diante de um compositor incontestável, de melodias lindas, arranjos maravilhosos e letras incríveis. O cara que tinha muito conteúdo, um cronista e poeta dos sentimentos humanos, de sua comunidade”, continua Caldi, dizendo-se feliz pelo fato de as orquestras estarem valorizando compositores desse gabarito.

Para Mateus Simões, diretor-executivo da OPS, a tendência das orquestras levar o universo da música popular para dentro da música de concerto desperta o interesse das pessoas para as formações sinfônicas ou camerísticas, criando um novo público. “Os concertos que já promovemos com obras do Los Hermanos, Michael Jackson e o Pink Floyd foram carregados de êxito. Gravar um CD em celebração a Cartola, um compositor genuinamente brasileiro, reforça nossa escolha.

E não é de hoje que a obra de Agenor de Oliveira desperta interessa interesse. Em 1940, l no contexto da política de boa vizinhança com os Estados Unidos, o maestro Leopold Stokowski veio ao Brasil gravar o que havia de mais expressivo em termos de música popular. Villa-Lobos apresentou Cartola ao colega. Ladeado por Donga, Pixinguinha e João da Baiana, o sambista participaria da gravação do disco “Native Brazilian Music”, lançado nos Estados Unidos pela Columbia. Villa-Lobos também convidaria o mangueirense a participar de alguns de seus espetáculos.

O que confere eternidade a um autor é a capacidade de criar uma obra capaz de atravessar décadas e motivar novas releituras. “Não quero mais amar a ninguém”, parceria com Carlos Cachaça e Zé da Zilda, é um exemplo. Os belíssimos versos “Não quero mais amar a ninguém / Não fui feliz, o destino não quis / O meu primeiro amor / Morreu como a flor, ainda em botão, / Deixando espinhos que dilaceram meu coração” foram cantados por Aracy de Almeida (1937), Paulinho da Viola (1973) e por Ney Matogrosso (2002).

“Cartola sabe sentir com suavidade dos que amam pela vocação de amar, e se renovam amando”, definiu Carlos Drummond de Andrade, em uma crônica publicada no Jornal do Brasil, em novembro de 1980 – mês da morte do compositor a quem também chamou de “mestre da delicadeza”. “Esse distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira sabe sentir e o samba é a forma encontrada para expressar sua vida, seus amores e o seu sentimento pelo mundo”, completou o poeta mineiro.

Chapéu coco rendeu o apelido

Nascido no Catete e criado em Laranjeiras na primeira infância, Cartola era filho de um português com uma negra. Dificuldades financeiras empurraram a família para o Morro da Mangueira numa favela que começava a formar-se. Foi lá que conheceu Carlos Cachaça, que lhe introduziu num universo de samba e boêmia. Perdeu a mãe aos 15 anos, abandonou a escola e passou a trabalhar como assistente de pedreiro. Vivia com um chapéu coco que usava para proteger a cabeça dos rebocos que caíam. O visual lhe rendeu o apelido para a vida toda.

Com os amigos de bar e batuque do morro, fundou em 1928 uma instituição do carnaval, a Estação Primeira de Mangueira, que teve como primeiro samba uma criação de Cartola: “Chega de demanda”. Nos anos 1930 e 40, teve várias de suas canções gravadas mas caiu no ostracismo na década seguinte com a tendência por sambas-canção que desaguou na Bossa Nova. Assim como outros sambistas de raiz, teve sua obra resgatada nos anos 1960 quando uma nova geração de sambistas ligada ao Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC/UNE), passa a valorizar os artistas da velha guarda como Nelson Cavaquinho, Ismael Silva e Zé Kéti.

O primeiro LP solo só seria gravado em 1974, quando o compositor tinha 65 anos. O trabalho recebeu vários prêmios e outros quatro álbuns foram gravados. Sucesso e reconhecimento tardios pois o poeta já estava com a saúde debilitada. De sua morte pra cá, foi gravado por Leny Andrade, Cazuza, Ney Matogrosso, Marisa Monte e Chico Buarque, com o CD de 1997, “Chico Buarque de Mangueira”, gravado com os integrantes da verde-e-rosa. Sua trajetória foi registrada no documentário “Cartola, música para os olhos” (2006), dirigido por Lírio Ferreira e Hilton Lacerda. Reverenciar Cartola e sua obra sempre será preciso.

SERVIÇO

TRIBUTO A CARTOLA

Octeto da Orquestra Petrobras Sinfônica

Cidade das Artes (Av. das Américas, 5300 – Barra – Tel: 3325-0102) - Hoje, às 11h e 15h

Ingressos: R$ 20 e R$ 10