Amigos de infância acertam contas de 41 anos em adaptação de livro húngaro

Por João Pequeno

Henrik (Herson Capri) e Konrad (Genézio de Barros) duelam em função do segredo guardado há 41 anos por Kriztina (Nana Carneiro da Cunha, ao fundo, com o violoncelo)

Sob a tensão crescente da guerra, dois amigos de infância voltam seus fronts para o reencontro que terão depois de 41 anos. O confronto entre eles é deflagrado pela carta de Konrad, que avisa estar voltando à cidade de onde desaparecera em 1899, durante uma caçada nos arredores do castelo da família de Henrik – agora, general do Exército da Hungria. Seu retorno abre a janela para que enfim se revele um segredo sobre a fatídica aventura de quando ainda eram meninos.

Trazida pela primeira vez aos palcos brasileiros, “As brasas” mergulha em questões de honra e amizade versus traição e desconfiança com a 2ª Guerra Mundial como pano de fundo, em tempo real, incluindo coincidências em breve futuro. Passada em 1940, a história do acerto de contas entre Henrik e Konrad foi escrita em 1942 pelo húngaro Sándor Márai (1900-1989).

Nesse ínterim, em 1941, a Hungria cedera à pressão alemã para se juntar ao Eixo, como retribuição pela ajuda em expansões territoriais; dois anos depois, em 1994, foi invadida pelas tropas nazistas, em retaliação por negociar um armistício com a Inglaterra.

Nessa guerra particular entre os dois amigos, a disputa territorial se dá em torno de suas diferenças sociais e, em especial, a respeito de Kriztina, mulher de Henrik e também amiga de infância de Konrad. É ela quem guarda o segredo que atormenta o agora marido por quatro décadas desde o dia daquela caçada.

Texto de estreia no teatro da novelista Duca Rachid, a montagem brasileira de “As brasas”, que abre temporada amanhã no Rio de Janeiro, começou a ser pensada há dez anos, quando ela ganhou o livro de presente de Júlio Fischer, também autor de TV e que assina a adaptação em parceria com ela. “Quando li, disse logo ao Júlio: ‘A gente tem que fazer isso para o teatro’”, conta a dramaturga, vencedora do Emmy Internacional de Melhor Telenovela por “Joia rara”, da Rede Globo, em 2014.

Antes de escreverem sua versão de “As brasas”, os autores leram uma adaptação anterior, feita pelo britânico Christopher Hampton, que a encenou em 2006, com Jeremy Irons no papel de Henrik e Patrick Malahide como Konrad. “Recebeu críticas terríveis, foi classificada como muito monótona, qual fosse quase um monólogo do Irons”, relata Duca, que resolveu trilhar um caminho bem diverso. “Demos mais voz ao outro personagem, Konrad, que falava bem pouco e, conosco, passou a ficar mais participativo, expôs mais o lado dele”, acrescenta a dramaturga, que ressalta o peso do olhar do escritor húngaro “sobre a aproximação da velhice, a noção crescente de finitude e de que forma isso tudo afeta a visão da amizade e de seus símbolos como o código de honra masculino”.

Mais do que a mulher, é a possível traição do amigo que tanto preocupa Henrik em “As brasas” – lançada em livro no Brasil pela Companhia das Letras. “A Kristina acaba funcionando quase como uma ponte para justificar esse ciúme que um amigo sente do outro”, avalia Duca, que reconhece a semelhança do argumento de Sándor Márai com o de “Dom Casmurro” – curiosamente escrito em 1899 por Machado de Assis –, com a diferença essencial quanto ao objeto de desejo e possessão do “Bentinho” húngaro, interpretado por Herson Capri.

Genézio de Barros vive Konrad e a violoncelista Nana Carneiro da Cunha dá voz e som a Kriztina, declamando suas falas e tocando a trilha original composta por Marcelo Alonso Neves, já que “no livro a música aparece relacionada aos personagens femininos”, como destaca o diretor Pedro Brício no texto de apresentação da peça, em que também ressalta a “decadência dessa dureza masculina”.

Esse declínio é paralelo ao do Império Austro-Húngaro, à cuja nobreza, na trama de “As brasas”, a família de Henrik pertencia há gerações. “Já a do Konrad, não; ela compra um título de nobreza”, frisa Duca Rachid.

Entre a separação e o reencontro, não só eclodem as duas grandes guerras como o Império Austro-Húngaro é extinto, com o ataque a seu arquiduque Francisco Ferdinando, dando início à primeira delas, em 1914.

Coincidentemente, o próprio Sándor Márai teve que deixar sua terra, mas sem retorno, em uma jornada que também durou 41 anos. Sem poder criticar o domínio comunista sobre o Leste Europeu, exilou-se em 1948 e se matou em San Diego (EUA) em fevereiro de 1989, nove meses antes de ruir a Cortina de Ferro.

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SERVIÇO

TEATRO DAS ARTES. Rua Marquês de São Vicente, 52, loja 264 (Shopping da Gávea). Tel.: 2540-6004. De 7 a 30/11. Qua. e qui., às 20h. Sex., às 21h. R$ 60 e R$ 30. Lotação: 418 lugares. Duração: 70 minutos.