Entrevista - Paulo César Pinheiro: Os recânticos de vários caboclos

Poeta, letrista, escritor e dramaturgo lança provocante livro de versos e fala sobre seu processo criativo nas mais variadas formas de expressão

Por Affonso Nunes

Cercado de livros e de fitas cassetes enviadas por parceiros, o letrista tem cerca de 600 trabalhos inéditos em música, além de 17 manuscritos de livros já prontos

O poeta e ensaísta americano Ezra Pound (1995-1972) disse certa vez que “o poeta é a antena da raça”. O também poeta, romancista, dramaturgo, produtor musical e compositor popular Paulo César Pinheiro sintetiza esta assertiva, mas gosta de dizer que recebe um caboclo toda vez que está criando. “Me defino com um observador da alma, da vida. Enquanto estou fazendo música, sou um compositor. Em determinando momento isso para dentro de mim. Aí muda de caboclo, baixa outro. Quando não é poesia de livro, é de música, de trilha sonora. Ou teatro, romance. Eu fico imerso nisso o tempo inteiro, esperando que venha o caminho que for. Não tenho pressa. Estou há quatro meses sem escrever uma linha”, revela no escritório de seu apartamento, em Laranjeiras, onde recebeu o JORNAL DO BRASIL para falar de seu mais novo projeto, o livro “Poemúsica” (Ed. 7 Letras), a ser lançado nesta terça na Livraria Blooks, em Botafogo.

Embora seja reconhecido por público e crítica como um compositor popular de uma extensa obra – cerca de 2 mil canções compostas, sendo algo em torno de 1,4 mil gravadas -, Paulo César deixa escapar o desejo de que seus livros recebessem igual distinção. “Minhas duas peças teatrais já foram premiadas. Tenho um Grammy e um Prêmio Shell pelo conjunto da obra… Se eu gostaria de receber um Jabuti? Claro que sim”, afirma o autor de nove obras – dois romances e sete de poesia, incluindo o caçula, e que possui 17 manuscritos de títulos inéditos em casa.

“Poemúsica” é um grande exercício do lado poético de Paulinho, de 69 anos. “É um livro com meus dons: a poesia e a música”, resume, animado, livro a mão. São cem poemas divididos em três seções distintas, com propostas, imagens e linguagens diferentes: poemétrica, na qual exercita sua técnica na construção de rimas como “Minha casa se divisa /De onde alcança o pensamento, / Parede é pedra de brisa, /Janela é tábua de vento” (“Dentro de casa”); poemágica, com a qual brinda o leitor com construções livres de métrica e repletas de neologismos e junções de palavras que se oferecem como novas palavras de novos significados como “A amargura do mundo / É que me espântano / São minas de tristeza e dor / Que escórregos / E eu só encontro sossego / É nos recânticos” (“Desconsolo”); e poemística, que explora os sentidos da alma, o simbólico, o mistério através de versos como “O amor é o nó de quem borda / A tristeza é um corte na corda” (“Concreto abstrato”).

Em abril, Paulinho completará 70 anos e as comemorações estão repletas de novos projetos, que incluem mais dois livros, um de contos, “Figuraças”, inspirado nas crônicas que fazia nos anos 1970 para o jornal “O Pasquim”, e outro de poesia “Mil versos, mil canções”, além de um álbum, “Lamento do samba vol. 2”, com músicas inéditas, e um documentário sobre ele com direção de Andréa Prates e Cleisson Vidal e exibição exclusiva e inédita do Canal Curta!. “Já gravamos 14 horas de depoimentos. Só aceitei fazer porque serei eu falando de mim, não há terceiros falando, o que me deixa mais confortável”, explica.

Mas evitar terceiros não é um hábito para este carioca de São Cristóvão que começou a compor aos 14 anos com João de Aquino (“Viagem”) e assina trabalhos com mais de uma centena de parceiros, entre os quais Baden Powell, Pixinguinha, Radamés Gnattali, João Nogueira, Tom Jobim, Sueli Costa, Ivan Lins, Maurício Tapajós, Raphael Rabello, Tito Madi, Francis Hime, Mauricio Carrilho, Wilson das Neves, Cristóvão Bastos, Mauro Duarte, Moacyr Luz e Luciana Rabello (com quem é casado), entre muitos outros.

Versado nos elementos da cultura africana como poucos, começou a estudar os mais diversos elementos da cultura negra lendo de forma voraz e frequentando rodas de samba de caboclos e de capoeiras. De um verso tradicional do samba de roda dos capoeiristas de Santo Amaro, nasceu seu primeiro sucesso, “Lapinha”. “Peguei os versos iniciais e criei em cima”, explica enquanto cantarola “Quando eu morrer / Me enterre na lapinha / Calça culote, palitó almofadinha”. A influência maior nesse período era o amigo Baden Powell, que também vivia em São Cristóvão. “Fui fortemente atraído pelas músicas poderosas dessa linha… aquele batuque diferente, riquíssimo em divisões estranhas. Isso sem contar as roupas, comidas, a língua, um mundo muito fascinante”, anima-se, apontando para os dicionários de yorubá e nagô que ocupam lugar de destaque numa enorme estante.

E este universo povoa sua obra. Suas duas peças teatrais. “Galanga Chico Rei” é a trajetória do rei do Congo que veio escravizado para o Brasil e tornou-se rei de um quilombo na província das Minas Gerais. Besouro foi um mestre capoeira cuja vida real mistura-se com lenda no Recôncavo Baiano. Foi líder da resistência contra a repressão policial ao movimento e o personagem é uma referência constante na obra poética do compositor. “O primeiro contato que tive com ele foi num capítulo de ‘Mar morto’, de Jorge Amado. Ele merecia uma história só dele e, por isso, escrevi a peça”, conta.

Ambas foram dirigidas pelo amigo João das Neves, recentemente falecido. “Essas montagens arrancaram elogios da temida Bárbara Heliodora, o que para mim foi uma proeza tão grande quanto os prêmios”, recorda o caboclo na pele do dramaturgo. “Lembro que ela pediu para me conhecer para me parabenizar. Acho que nem sabia que eu era um compositor conhecido”, diverte-se.

A reputação de Paulo César Pinheiro como compositor se consolidou com os festivais, populares nas décadas de 1960 e 1970. “Festival dava grana. Ganhei muito dinheiro com eles. Mas também era um espaço importante para conhecer novos autores, músicos e intérpretes. Uma troca imensa”, comenta. “A indústria mudou e os festivais tentaram se adaptar, sem sucesso”, avalia.

Como funciona o processo de um compositor de obra tão vasta? Há uma disciplina ou é apenas essa questão de baixar o santo? Paulo César abre um caderno de capa amarela e explica. “Aqui estão anotações de ideias que me surgem. Versos esparsos, situações que vislumbro na rua, num bar, em qualquer lugar, frases que escuto… Não vivi tudo o que escrevo, mas observo”. Mas as anotações não estão somente no caderno. Pequenos pedaços de papel com notas misturam-se com uma pilha de mais de 20 fitas cassete sobre a escrivaninha. “Essas fitas? São de parceiros que me pedem letras. Eu me fecho aqui para ouvir essas melodias, escrever, consultar a anotações. E isso não tem hora para acontecer. Pode ser no meio da tarde ou de madrugada. Minha mulher colocou uma cama aqui para mim. Costumo dizer que eu moro nesse escritório e as outras pessoas no resto da casa”.

A maior parte das letras de Paulinho são feitas de forma livre e sem hora certa para acontecer, mas não são raros os pedidos para um trabalho conceitual. “No fim do ano, a Glória Bonfim vai lançar um álbum chamado ‘Chão de terreiro’, só com músicas minhas. Às vezes tem cantores e cantoras que me procuram buscando uma música e ficam tão empolgados com as coisas que mostro que acabam montando um disco só de com letras minhas”, comenta e começa a colocar no papel as letras fornecidas para artistas que lançaram ou lançarão trabalhos somente este ano, entre eles Yamandu Costa, Toquinho, Breno Ruiz, Marcelo Meneses e o sobrinho Miguel Rabello, um talentoso violonista de 22 anos e mais alguns nomes. Total: 78!

“Acho graça quando leio que um determinado compositor, que estava há um tempo sem coisas novas, lançar quatro, cinco trabalhos inéditos. Aqui devo ter umas 600 letras prontas”, gaba-se o autor de trilhas para cinema, novelas e minisséries, ganhador de um Grammy Latino, em 2002, na categoria melhor canção brasileira, com “Saudade de amar” (parceria com Dori Caymmi), interpretada por Nana Caymmi, um Prêmio Shell da Música Brasileira pelo conjunto da obra e um Estandarte de Ouro pela Tradição, dissidência da Portela que ajudou a fundar.

Mas o autoelogio não soa pedante. Paulo César Pinheiro faz o que gosta, o que sempre quis da vida desde jovem. Suas canções ganharam o Brasil nas vozes de Elis Regina, Elizeth Cardoso, Simone, Clara Nunes e uma extensa relação. “Clara foi a primeira cantora a vender mais de cem mil cópias de um único álbum. Quebrou um tabu de que cantoras não vendiam disco e abriu caminhos para outras artistas”, destaca o compositor que foi casado com ela de 1975 até sua morte precoce, em 1983. Eternizada por Clara, “Canto das três raças”, de Paulo César e Mauro Duarte, ganhou dezenas de versões mundo afora.

Diabético, tem procurado beber menos e está sempre às voltas com um medidor eletrônico de glicose. Quando sente secura na garganta, masca um chiclete diet – são pacotes, de vários sabores, espalhados pelo escritório. Mas é uma criatura de doce trato, cheia de histórias para contar. Perguntado se ainda frequenta o bairro de infância, conta que sim, porém, com frequência menor, desde a morte da mãe. “São Cristóvão é um daqueles lugares de onde parece que a gente nunca saiu. Uma vez fui visitar meu irmão e fomos beber uma cerveja num bar. Fazia sete anos que ia ali. Estava idêntico, tudo do mesmo jeito, e os amigos e conhecidos que passavam e me cumprimentavam como se eu estivesse ali na véspera”, exagera. É caso para mais uma letra de música, um poema ou mesmo uma peça.

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SERVIÇO

LANÇAMENTO “POEMÚSICA – PAULO CÉSAR PINHEIRO

Editora 7 Letras - 132 págs. - R$ 39

Livraria Blooks (Praia de Botafogo, 316, loja D - Tel: 2237-7974) - Hoje, às 19h – Entrada franca