Filipino Lav Diaz traz musical em P&B sobre a luta contra a intolerância

Por Rodrigo Fonseca *

Médica desafia a intolerância das forças armadas no longa mais recente de Lav Dias

Paciência é o bem mais precioso e abundante de Lav(rente Indico) Diaz, cineasta de 59 anos que, festival a festival, seja Cannes, Berlim ou Veneza (onde ganhou o Leão de Ouro em 2016, por “A mulher que se foi”), vem colocando as mazelas das Filipinas, sua terra natal, no centro das discussões do planisfério cinéfilo. E o faz de uma forma que desafia todos os cânones mercadológicos do cinema, mesmo o de linha independente: seus longas-metragens, de fortes tintas teatrais na encenação e na suspensão do viés naturalista, são... longos... looooooongos mesmo. A média: quatro horas, sendo que “Canção para um doloroso mistério”, pelo qual conquistou o Troféu Alfred Bauer de Inovação de Linguagem na Berlinale 2016, tem oito horas e cinco minutos do que uns chamam de radicalismo e outros, de pura poesia. Um curta-metragem dele, “Prólogo para o grande desaparecido” (2013), tem... 31 minutos! Guerra civil, ditadura militar, feminicídio, machismo e outras modalidades de intolerância são alvos de crítica em produções como “Estação do Diabo”, musical ritualizado de três horas e 54 minutos, já assegurado para a programação do Festival do Rio, que começa quinta-feira.

“É muito incômodo perceber que as pessoas entendem a palavra cinema como algo associado a uma manifestação de duas horas de duração ou de uma hora e meia de reviravoltas formatadas pelo mercado sob uma lógica contínua de causa e efeito, na qual as sensações se amontoam para conduzir o espectador a uma certeza. As pessoas vão ao cinema para descobrir quem matou quem, quem roubou quem, quem tem a chave para o enigma. Eu venho de um país cheio de conflitos, que já levaram muitas pessoas à morte. Você realmente acredita que existam respostas, verdades na arte que vem de uma realidade como a das Filipinas? E mais... você acha que isso é um problema só da minha nação?”, questiona Lav Diaz, num papo com o JORNAL DO BRASIL no Festival de Berlim, em fevereiro, ao lançar seu novo filme, chamado “Estação do diabo” mundialmente.

“O preto & branco entra na minha arte como um efeito de linguagem: o cinema precisa suspender a realidade para exumá-la. E a direção é distendida para que cada sequência, ou melhor, cada plano possa ser apreciado em todos os seus detalhes, desde o movimento dos atores até a lei física por trás do vento nas folhas. Eu não corro pois não faço produtos. Faço propostas de transcendência, o que depende da troca livre com o espectador. Cinema não é negócio, é ritual”.

Estruturado a partir de planos estáticos de poucos elementos em cena, “Estação do diabo” dispensa instrumentos musicais (cordas, sopros, percussões), apostando em cânticos (ladainhas mesmo) sobre o processo da violência militar na Ásia dos anos 1970. Existe uma trama: uma médica encara as forças armadas e é detida por isso, mobilizando os esforços de seu amado, um poeta e militante do partido de oposição ao exército, para salvá-lo. O amor desse casal, a certo ponto, até contagia a plateia. Mas, depois de uns 30 minutos, esse enredo se torna supérfluo: o que importa é a experiência quase metafísica de viajar no tempo a partir de uma gira quase religiosa. O diretor responsável por essa cerimônia estética (insuportável para muitos que abandonam a sala de projeção com 20 minutos de filme; reveladoras para os que resistem até o fim) é um prolífico artesão autoral na ativa desde 1991: escreve, edita, compõe trilha, fotografa, produz e dirige. Chega a fazer dois longas a cada dois anos, atraindo investidores da Ásia e da Europa, que bancam o custo estimado em R$ 500 mil de cada longa dele.

“Se você vem de um contexto de repressão, a arte só faz sentido como sendo algo que liberte, não apenas das neuroses violentas do mundo como das neuroses do mercado”, diz Lav, sempre com um sorriso de orelha a orelha, que só se desfaz quando lhe perguntam sobre a hipótese de encurtar seus filmes. “Hoje, com o boom das séries de TV, as pessoas assistem a maratonas de dez episódios de ‘Game of Thrones’ ou de ‘House of cards’ sem reclamar, como se fosse um hábito de consumo normal. Por que então a experiência de gastar quatro horas na sala de cinema, contemplando imagens que fogem das convenções, incomoda tanto? Será que toda experiência audiovisual é obrigada a se pasteurizar num formato de série americana, tendo no diálogo sua força estética principal. E por que as próprias salas exibidoras precisam estar formatadas a um tipo de estrutura narrativa, a hollywoodiana, em vez de assumir sua real vocação: ser um templo. Um templo onde a fé no mistério da arte pode levar ao improvável, ao inesperado. O inesperado pode não se contentar com duas horas”.

Descrito como uma ópera rock sobre a opressão das milícias nas selvas das Filipinas, “Estação do diabo” soma misticismo e filosofia para narrar a construção do mito de uma heroína capaz de sacrificar pelo bem de seu povo. No cinema de Diaz, a mulher é sempre um signo de força, de resistência. Em Berlim, o longa foi chamado pela crítica alemã de “experiência embriagadora”. É a expressão que ele mais coleciona desde que chamou a atenção da imprensa internacional e dos curadores com “Norte, o fim da história” (2013), de 250 minutos imunes a bocejos e cansaços. “Meus filmes são reflexos de feridas históricas da colonização espanhola, num jugo imperialista que deixou traumas”, diz Lav. “A única forma de eu encarar esses fantasmas é pela imersão. É a partir dela que eu encontro a trilha de universalidade capaz de abrir dores típicas de um filipino para pessoas de outros cantos do mundo. Assim como Hollywood, eu também tenho meus super-heróis, só que eles não são seres voadores ou mascarados que combatem o crime na violência. Meu herói é Tolstói. Meus heróis são os cineastas que me ensinaram a traduzir poeticamente o tempo, como o húngaro Béla Tarr e o russo Andrei Tarkóvsky. Eles renovam minha fé no mundo. Não existe cinema lento: existe cinema, ponto. A lentidão é da vida.”

Antes de mergulhar nas inquietações de Diaz, os maratonistas do Festival do Rio terão como atração de abertura o thriller “As viúvas”, de Steve McQueen, com Viola Davis comandando um assalto ao lado de um grupo de mulheres que perderam entes queridos. A sessão será na quinta. Integram o menu do evento, que vai até o dia 11, produções esperadas como “A pé ele não vai longe”, de Gus Van Sant; “Vision”, de Naomi Kawase; e “Infiltrado na Klan”, de Spike Lee. O ganhador do Urso de Ouro Berlim e da Palma de Ouro de Cannes já estão garantidos também: “Não me toque”, de Adina Pintilie, e “Assunto de família”, de Hirokazu Koreeda. Não faltam também documentários sobre o estado de coisas destes tempos de intolerância global, como “O que você irá fazer quando o mundo estiver em chamas”, do italiano radicado nos EUA Roberto Minervini, ou “Seu rosto”, do taiwanês Tsai Ming-Liang, ambos badalados no Festival de Veneza. O .doc de Mivervini, sobre exclusão racial, foi eleito o melhor longa de não-ficção do recém-encerrado BFI – London Film Festival, de onde o evento carioca pinçou um potencial concorrente ao Oscar: “O favorito”, de Jason Reitman (“Juno”), com Hugh Jackman na pele de um presidenciável abalado por escândalos pessoais.

*Roteirista e crítico