Olhos de não ver

Por Claudia Nina*

Cena do longa-metragem "Ensaio sobre a cegueira" (2008), do diretor Fernando Meirelles, baseado no livro homônimo de José Saramago

Uma cidade inteira perde o sentido da visão. O mal coletivo, alastrado como epidemia, faz estragos de forma rápida e fulminante. Tudo começou quando um primeiro cidadão normal, de bem, nem criminoso nem pecador ostensivo, a menos que se provasse o contrário, torna-se ignorante diante de um sinal de trânsito fechado. Avançar ou ficar?

“Estou cego”.

A doença inexplicável é provocada por um agente mórbido ainda não identificado, pois não se conhece as formas de contágio. O curioso é que o mal em questão não é a treva, mas a ilusão de uma glória luminosa – a cegueira é branca como o leite. Em toda a história da Oftalmologia, nunca houve uma cegueira contagiosa e sem lesões que a justificassem. Os olhos estão perfeitos, “apenas” não enxergam. Famílias inteiras contaminadas, todos caindo juntos, inexoravelmente.

No meio da loucura instituída e do alarme social, homens descem à categoria do inumano, entregues à quarentena e à barbárie. Uma única mulher consegue ver e lhe resta o peso nos ombros: mostrar aos que não enxergam o caminho da liberdade, para fora do isolamento.

Aos poucos, como era de se esperar, pois a cegueira não transforma ninguém em melhor nem pior, apenas faz aflorar o que as pessoas já são, os malvados, ladrões e devassos se revelam e passam a dominar os demais na multidão – são os cegos malvados, que montam o poder dentro da quarentena na base das armas de fogo. São eles que obrigam as mulheres a se entregarem em troca de comida e água. E pensar que tudo começou quando uns primeiros deixaram de enxergar. Quando podiam ver, não atinaram que seriam contaminados. Será que, se percebessem, conseguiriam se livrar do mal?

“Já ninguém se pode salvar, a cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança”. A frase está no livro onde a atordoante história acontece, “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago, publicado em 1995 e mais atual do que nunca. Relê-lo, neste momento crucial do país, é repensar a nossa incapacidade de enxergar que, depois do fundo do poço, existe um fundo cego – não se enxerga aonde vai dar o buraco sem fim.

No romance, o governo lamenta ter sido forçado a exercer energicamente o que considera direito e dever – proteger por todos os meios a população. Isso quer dizer, entre outras coisas, que abandonar o edifício sem autorização era morte imediata. Os relógios estavam parados. Viviam, então, aprisionados em um presente-passado eterno. De um dia para o outro, foram privados de futuro. E mais: de que valem os museus se ninguém mais pode ver as obras? Beleza e cultura reduzidas ao nada. Os cegos só se preocupam em matar a fome e garantirem a sobrevivência.

Entre as formas de se tornar um animal, a cegueira coletiva era uma delas. E de nada adiantava chorar – os estragos criados por olhos perfeitos, mas que não enxergam, são irrecuperáveis. Os cegos, em bando, nos antros fétidos que se tornam as camaratas, não conseguem enxergar a merda onde pisam. Cabe também a metáfora.

A voz dos soldados nos autofalantes alertam o rebanho sobre como devem se comportar: “Atenção, atenção, os internados têm autorização para virem recolher a comida, mas cuidado, se alguém se aproximar demasiado do portão receberá um primeiro aviso verbal, no caso de não voltar imediatamente para trás, o segundo aviso será uma bala”.E qual a vontade – a gana – dos que comandam a quarentena? “(...) apontar as armas e fuzilar deliberadamente, friamente, aqueles imbecis que se moviam diante dos seus olhos como caranguejos coxos, agitando as pinças trôpegas à procura da perna que lhes faltava”.

Um dos coronéis acha que a melhor solução seria logo sair matando os cegos que aparecessem pela frente, pois o bando só crescia, alastrando a maldade de uns para os outros dentro da reclusão. À mulher que enxergava, sobra organizar a fuga e a morte de um dos malvados. Muita luta, sangue, fogo e resistência seriam necessários para que alguma forma de reorganização surgisse a partir do caos até o fim surpreendente da história, sinistramente atual.

Que a humanidade está doente não é novidade. Que a arte, incluindo a literatura, pode quase nada contra a barbárie, também ninguém duvida. Mas é o que resta para quem vive da palavra: indicar alguns caminhos possíveis de liberdade.

Há esperança?

É Saramago quem escreve: “(...) tenhamos esperança de que o fogo, quando fizer desmoronar-se o telhado e atirar por ares e ventos um vulcão de labaredas e tições a arder, não se lembre de propagar-se às copas das árvores”.

Este texto não é uma resenha.

*Jornalista e escritora